Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Estudos Recentes - Flavio Cafiero

$
0
0



(…) é que a baleia chega a aguentar noventa minutos sem precisar buscar oxigênio na superfície. Não desafia a vida, não é nada disso, brincar com as fronteiras é prazer genuinamente humano (sempre penso em você quando cruzo o Trópico de Capricórnio na estrada), ainda que a baleia, segundo um estudo recente (sempre os estudos recentes para ajudar na confusão), ainda que a baleia tenha um nível de consciência bastante desenvolvido, não como o do porco, segundo a pesquisa, não como o do golfinho, não, a baleia tem um nível de consciência (não me peça para definir consciência, é um conceito que tem durado poucas semanas), a baleia tem um nível de consciência muito bom se comparado, digamos, ao do pato, ao do tubarão, ao do canguru, ou mesmo se comparado ao seu. Brincadeira, claro, você parece boba, mas sabe que vai morrer. E o fim pode ser bonito como um iceberg, aquela luz bonita se espalhando pelos cristais de gelo, aquele azul que não é azul, um clarão difuso, e uma baleia em apneia trombando a cabeça (baleia tem cabeça, sim, o membro é separado a ponto de ser uma cabeça), a baleia estraçalhando o cocuruto nos fundilhos de um bloco de gelo bonito, lindo mesmo de olhar, e aí é o sangue se infiltrando entre os cristais, já viu como é? Uma baleia em apneia também pode ficar bem confusa. Estamos no verão, afinal, e o verão é a estação da morte, embora nosso imaginário distorça os fatos para o lado inverso. Quem pensa em iceberg no verão? No verão os pedestres saem de casa com uma frequência maior, arriscam-se a atropelamentos de automóvel, deslizam o cóccix em corredores de shopping centers climatizados, levam um piano na moleira, parece piada, e ficam como a baleia, encravados em seus próprios icebergs. É no verão que adolescentes impetuosos se afogam na correnteza e senhoras bronzeadas acumulam silenciosamente melanomas sob a pele, e os casais entram com tudo em uma vitrine, com tudo mesmo, moto, bolsa, celular, aliança de noivado na caixinha, logo depois daquele aquecimento inocente em casa,vinho branco geladinho, beijos, avanços, e então precisam correr para garantir a reserva na área externa, e pronto. É no verão que os velhos se desidratam na praça, as criancinhas dormem esquecidas no banco traseiro, famílias inteiras são surpreendidas durante o sono e carregadas pela enxurrada, agarradas aos travesseiros, e até os ratos morrem sufocados entre as manilhas subterrâneas (e um rato, você já deve supor, não aguenta tanto quanto uma baleia). No verão os cemitérios ficam congestionados (os obituários estão lotados, não reparou?), os amigos precisam voltar da praia mais cedo porque o metido a corajoso resolveu se exibir na piscina. É uma merda o verão, e fora o calor, a umidade, a chuva no fim da tarde, e fora você reclamando do ventilador, e que passou um ano e nada de ar-condicionado, e que esvazio a garrafa d’água pelo gargalo, e que deixo as janelas abertas e molha tudo. Estudos recentes provam, é A mais B, tiro e queda, as análises não deixam margem, e nem sobra para dúvidas: o verão é perigoso, por bonito e divertido que seja. Mas como viver sem a merda do perigo, ao menos um periguinho, comer aquele legume exótico, abrir aquela porta reservada aos funcionários, subir a escada carcomida de ferrugem, quem vive sem isso, quem? Concordo, as ameaças podem se esconder em cenários menos óbvios, em coisas fofas, coisas brancas, coisas limpas, coisas invisíveis até, pense só na água que bebemos, no ar que respiramos, e em coisas treinadas e certificadas, como os motoristas de ônibus. Você já percebeu o absurdo que é colocar a vida na mão de um motorista de ônibus, parou para pensar que é um estranho mal pago, fodido, cansado, com sono, faminto, e você lá dentro, pendurada? Então não tenha medo, o universo é candidato à tragédia, tudo, tudo, não se preocupe com isso, você vai aguentar, a gente já passou por cada uma, sua mãe já foi, seu pai já era, você não tem irmãos, suas amigas falam mal de você, sobrei eu (somos eu e você até que a morte nos separe), e sobrou esta casa, tão cobiçada pelos vizinhos, jardim, lavanderia, quarto do bebê, vazio, sótão gostosinho como os dos filmes e, claro, a piscina. Piscinão. Piscinaço. Puta merda, que água gelada,eu falei para não economizar e instalar um aquecedor decente, a gente nunca pensa no inverno ou nessas frentes frias fora de época, a gente não pensa na morte e em como deve ser reconfortante partir quentinho. A morte pode ser lenta, devagar quase parando, matreira. Pense na morte sendo extraída de uma mina qualquer, sendo processada e fundida, comercializada em placas, e refundida, e moldada em peças, e montada, e depois comprada no varejo, e carregada, e engatilhada, e depois disparada bem perto da têmpora. Bem devagar (e isso sem pensar nos milênios que o ferro demorou para existir), bem devagar, a danada vem sendo arquitetada desde sempre. A morte pode ser gerada, nascida, e criada, e nutrida, engordada e sacrificada, e picotada, embalada, congelada, e finalmente temperada, marinada, esquecida fora da geladeira, e pronto. Mas a bendita também pode ser sonhada, planejada, desenhada, escavada, azulejada e preenchida com água até a linha azul. Piscinão. Piscinaço. Eu gosto de contar como minha irmã morreu, porque não tem coisa mais linda (sei que você me acha repetitivo, que recorro sempre às mesmas histórias), e vamos ver se dá tempo de eu contar mais uma vez, aguenta firme aí. Um dia perfeito, mesa posta e pão crocante, ar da montanha, vinte e um graus, e minha irmã com o namorado, descendo a serra no carrão novinho (extraído, fundido, comercializado em placas, montado, anunciado, comprado à prazo), minha irmã sentada no banco do carona gritando: caralho, olha só quanta borboleta amarela! Som nas alturas (bem lento: insight, composição, ensaio, fita demo, contrato na gravadora, arranjo inovador, mp3), e a voz no limite, you’vegoneto the finestschoolallrightMiss Lonely,sotaque exagerado, pronúncia embolada, mas tudo bem. Os insetos sofrem no período seco (insetos hibernam?), e quando chegam as chuvas irrompem como se o mundo fosse acabar (os insetos sabem das coisas, é uma forma de consciência), e num piscar são milhões de asinhas amarelas invadindo as estradinhas bucólicas, várias borboletinhas se espatifando contra o para-brisa, puta sacanagem, acabaram de chegar e já se esborracham, e o garotão com o pé no acelerador, e a bendita ali, de tocaia, camuflada de alegria e de borboletas. E o namorado abre a janela, põe a cabeça para fora e grita a felicidade e o tesão, registra o momento para quem possa ouvir, e as pessoas torcendo o pescoço para ver o carrão que passou, olha, escuta isso, acabou de passar um doido gritando, e minha irmã faz o mesmo, escancara o vidro, canta alto, how does it feelhow does it feel,e abre os olhos para ver a morte chegar, sentindo o vento inflar as pálpebras, tremular o rosto, alisar o cabelo, e um besourão vem voando escondido entre as borboletas frágeis, um besouro feliz de tanto verão e água, perfurando a gelatina do olho castanho da minha irmã, uma flecha de proteínas bem no alvo direito. Estúpido, não? Acasalamento, ovos, eclosão, pupa, asinhas, zunidos (espécie rara, rezam os estudos recentes), sei lá se é assim mesmo que os besouros nascem, e então a morte. Sexo burocrático, acompanhamento médico, fecundação, compras no exterior, que lá tudo é mais em conta, cesariana, amamentação, escola, e a primeira paixão na faculdade, e, então, a morte. Irmã e besouro, morte para os dois lados. É o verão, não falei? Agora pensa no moleque engolindo o alfinete de ursinho porque a mãe foi fumar lá fora (a bendita também está nas coisas fofas, esqueceu?). Não vai dar tempo, certo, muito bem, nós aguentamos bem menos que noventa minutos,bem menos que as baleias. Você está chegando ao limite, vai ver de perto a bendita encharcada e com cheiro de cloro, mas não sou eu que vou decidir, eu sou um cagão, tenho medo da polícia, sou claustrofóbico demais para uma cela de penitenciária. Você está de olho aberto ou fechado? Ah, coisa linda ver você arfar e engolir todo o ar que puder. Estudos recentes dizem que experiências limítrofes nem sempre são capazes de moldar uma personalidade ou causar traumas, nem sempre as coisas desentortam, mas tenho lá minhas esperanças, meus próprios travesseiros, fodam-se os estudos recentes. Pronto, já deu. De qualquer forma, já deve ter um câncer lindo brotando aí no peito, bem lento, célula um, célula dois, corrente sanguínea, pulmão direito, pulmão esquerdo, e vou saber esperar. Já está acabando, isso, isso, isso, agora vem, pode subir. Respira fundo. Agora me conta, vai. Agora me conta como é.



Conto extraído do livro DEZ CENTÍMETROS ACIMA DO CHÃO, (2014, Cosac Naify), finalista Prêmio Jabuti 2015.



Fotografia:Bruno Marques
Flavio Cafiero é carioca e vive na cidade de São Paulo. Formado em Comunicação Social pela UFRJ, é também dramaturgo e roteirista. Seu romance de estreia, O frio aqui fora (Cosac Naify, 2013), foi finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e Jabuti (2014). Dez centímetros acima do chão (Cosac Naify 2014), livro vencedor do prêmio Cidade de Belo Horizonte (2013), é sua primeira coletânea de contos.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548