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Conversão - Manoel Herzog

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Foi numa rua escura de La Paz
Voltando de Sevilha, do avião
Desci, tomei um táxi pro convento
Onde pretendia os anos passar
Eremitério de silêncio e luz

O motorista, sem bem reparar
Se eu era monge, e nem de hábito eu ando
Ia em conversas de tom popular
Que os chulos versam nos bares da vida
Contando casos de sexo ou metal

À porta de uma igreja, um
callejón,
Uma viela humilde, um velho templo
Com porta de fundido ferro e fícus
Brotando desde as frestas do reboco
Ele parou, contou-me um caso escuso:

Que sempre ali trazia uma rameira
Que o padre da paróquia recrutava
Os préstimos da moça a par do voto
De castidade que devia ter feito
E que era sempre, sempre a mesma puta

A mulher lhe contou taras do monge
Do meu confrade. Que fumava maços
De cigarrilhas mentoladas Talvis
Durante o coito. Que bebia pisco
Que amava dar-lhe tapas no traseiro

E mais, que ele admitia certas práxis
Que aos homens é curial se inadmitir
Pedia-lhe que as costas arranhasse
Com unhas de vermelho-carmesim
E o salto agulha fundo lhe atochasse

Sem revelar que eu era um religioso
Rimos junto e aprovamos a conduta
Do torpe sacerdote libertino
Enfim que graça tem vida sem coito?
Sem coito, não, sem salto agulha e fumo

Quando deixou-me à porta do convento
O pobre diabo viu que se tratava
Seu passageiro de um homem de fé.
Prostrou-se, foi ao chão, perdão rogou-me
Mas tão somente abençoei-o e disse:

Irmão, a vida é carta de delícias
Cada qual prova das que lhe convêm
Mulher, vinho, loucuras e sevícias
Faz tudo parte da criação de Deus
Não me peças perdão, não sou polícia
Celestial, irmão, goza tua vida

Eu próprio, aqui no lupanar divino
Que é este convento, vou trancar-me agora
Gozar delícias de uma interior vida
Maior que algum tesouro que há no mundo
Na vida a todos Deus nos quer gozando

Minhas palavras, que tanto absolveram
Como exortaram a felicidade
No condutor, conversão operaram
Meses depois ele vendeu seu táxi
Deu tudo aos pobres, veio pro convento

Não sendo um iniciado em nossa Ordem
Foi-lhe só dado o cargo de caseiro
Em penitência vive, e goza horrores
Tem alucinações iluminadas
Prazer, satisfazer desejos d'alma

E é esta a história de Theofilo Aberna
Nosso amável caseiro, homem piedoso
Deplora o mundo fora do convento
Abandonou seu passado trevoso
No catre frio de um quarto sem pintura
Dorme abraçado a Deus, em eterno gozo.

Fray Luiz de Atahualpa
Bolívia, 1984



Poema de A comédia de Alissia Bloom(Editora Patuá),  finalista do Prêmio Jabuti 2015.




Manoel Herzog é autor dos livros O evangelista (Romance - Patuá, 2015), A comédia de Alissia Bloom (Poesia - Patuá, 2014) e Companhia Brasileira de Alquimia (Romance - Patuá, 2013). Manoel Herzog nasceu em Santos a 24 de setembro de 1964. Em 1987, estreou com a publicação do livro de poemas Brincadeira Surrealista. Cursou Direito na Faculdade Católica de Santos. Foi finalista, com o romance Amazônia, do Prêmio Sesc 2009. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Em janeiro de 2012 publicou o romance Os Bichos, pela Editora Realejo. O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi premiado pelo FACULT. Também escreve quinzenalmente uma crônica literária na coluna Cais das Letras, no site Cinezen: http://cinezencultural.com.br/site/
O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014.


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