sobre poesia e transpiração
é inegável que dias frios,
ainda que ensolarados, são
mais propícios à criação poética. alguns
dos mais belos poemas de Du Fu, por exemplo,
foram escritos no outono
sob a melancolia natural que há no ar, nessa estação, sob
o azul intenso do céu, sob as folhas amareladas das
árvores que começam a se desprender e cair. veja
este exemplo (o rio, de aparência sombria /
reflete o sol outonal // fragmentos de lótus e de castanhas /
vão boiando em sua superfície // eu sigo vagarosamente pensando /
no vazio de minha velhice).
meu ponto (finalmente chego a ele) é: será
que uma poesia assim tão densa, tão
intensa, pode ser escrita sob o calor dos trópicos?
sob o sol, na praia? sob um guarda-sol? enquanto
derretemos de tanta transpiração? e é nesse
ponto que você, como sempre faz (quando
nossas conversas tomam rumos assim), me
manda calar a boca e parar de falar besteiras. e é nesse
ponto que eu encho o copo, dou um gole bem longo,
e obedeço. porque você tem razão.
tão linda
vi o seu retrato numa revista e me
apaixonei. foi na hora, na mesma
hora. eu pensei: esta é a mulher que
eu amo, que eu vou amar e que farei
feliz. você estava linda, era um ensaio
de moda e você estava linda. eu queria
sentir a sua pele e beijar delicadamente
os seus ombros, e a sua nuca, quando
o seu cabelo castanho estivesse preso,
num coque, e o seu pescoço, que é tão
fino e tão lindo, estivesse à mostra. eu
queria tanto saber o seu nome.
apaixonei. foi na hora, na mesma
hora. eu pensei: esta é a mulher que
eu amo, que eu vou amar e que farei
feliz. você estava linda, era um ensaio
de moda e você estava linda. eu queria
sentir a sua pele e beijar delicadamente
os seus ombros, e a sua nuca, quando
o seu cabelo castanho estivesse preso,
num coque, e o seu pescoço, que é tão
fino e tão lindo, estivesse à mostra. eu
queria tanto saber o seu nome.
o carneiro
enquanto sentíamos o vento ainda fresco do começo
de primavera invadir a nossa tarde sonolenta,
um carneiro branco, meio cinza na verdade, mas
de uma maneira geral branco, apareceu, sem aviso,
no quintal de casa. e, como a nossa situação financeira
não fosse boa, logo o mataram. à noite, comemos, felizes,
toda a carne do bicho. trata-se de uma metáfora?, você
me pergunta. não: fome é fome, carne é carne, e esta é
apenas a longínqua história de uma refeição. e, quer
saber do que mais? eu até hoje me lembro do sofrimento
do bicho na hora da morte, e do cheiro de sangue* * *
André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo no longínquo ano de 1961. É historiador, editor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios. Agora, em agosto, lança o livro de poemas Outubro/Dezembro, pela editora Patuá.