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O cristal da palavra nos poemas de Tomaz Amorim Izabel.

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Modelo atômico dentro de um cristal.



Cristal

Sua transparência e dureza,
sua forma angulosa e precisa,
sua homogeneidade,
constância,
a permanência aristocrática de sua postura,
a nobreza de sua escassez,
você:
inquebrável -
resistente às cólicas tectônicas
do planeta sobre você.
Ainda assim, nesta mineralidade,
sua variedade monocromática e arco-íris
nomes luminosos rubis, safiras, esmeraldas
nomes estupendos topázios, diamantes!
Ainda assim, sua universalidade:
a auto-evidência de seu valor para todos,
seu nome quase cristão, mas não, pelo contrário.
A elegância de ter como principal utilidade
uma não-utilidade, um iluminar profano,
ser adorno amplificador de outra ordem de belezas,
amplificador e equalizador de todo tipo de energias cósmicas e elétricas,
Cristal, um nome auto-referencial.
A elegância de sua risada discreta diante do tempo devorador.
Seu tempo é o mesmo dos deuses,
entediados com os tempos orgânicos.
Cristal silencioso que gargalha tímido quando tocado,
que faz eco quando chamado pelo nome certo.
Cristal, você sente inveja de mim
que apodreço e ressuscito cinco vezes ao dia?
Que de puro não tenho nem mais a palavra,
que, pelo contrário, cortejo obsessivamente a mestiçagem:
Meio homem, meio capivara,
meio viado, meio sapatão.
Eu, meio corpo cheio de órgãos,
meio constelação de estrelas que já não há.
Eu, flácido e flexível, língua e sexo,
eu, completamente opaco, pulsante e multicolor.
Eu, que acordo homem, durmo mulher e que durante a tarde sou anjo.
Eu, que sinto prazer e angústia no derramamento do meu sangue,
que lambo sedento as gotas derramadas pelo cadáver do tempo.
Eu, Cristal, que sinto o tempo às vezes vendaval,
às vezes brisa.
Que falo nas gírias da Perracine
e que frequentei o Monte Sinai no Vila Julia.
Eu, que ainda assim, te escrevo poemas com tinta vermelha e hebraica,
que nos melhores dias danço samba e butoh,
com frutas sobre a cabeça e tinta cinza sob os olhos.
Eu, que enrijeço a barriga apenas para rir e vomitar,
que perdi a vergonha de rir com dentes amarelos,
que vejo uma boca faltando dentes como quem vê um céu estrelado.
Eu, que amo as pessoas como o pastor ama as ovelhas
cada uma por seu nome e cachos, todas ovelhas.
Eu, que surfei castanho sobre as ondas de lava
do Brasil neolítico e que surfei sobre os trens do Rio de Janeiro,
aquele que se incendiou pelo calor, que se despedaçou entre os vagões.
Eu, que me pareço com mil homens e algumas mulheres,
mas que sou desconhecido de todos,
desimportante como uma pomba,
raro como a grama.
Minha utilidade, minha mão de obra não especializada
a espera do valor que o mercado decidir me dar.
Minha ausência ontológica de qualquer valor ou utilidade,
minha jequice, minha timidez, minha mineirice.
Você tem inveja de mim, Cristal?


_____________________________________


Baphywave 3/3

I.
O coice veloz da ovelhinha branca,
que tem como pasto campos azuis,
bate na areia e dela arranca
cada injustiça enterrada em raiz.
Na praia, depois, no pós-ritual,
lembrança e lição: carranca em cristal.
Pompéia carioca, Vesúvio-Pão
Justiça aos inocentes do Leblon.

II.
Ali dança gente com roupas brancas
e com lenços claros nas cabeças
suas mãos cavam os ares
e seus dedos dos pés as areias
enfeitados de flores e verduras frescas
suas peles de todos os tons de marrom
na juventude lisa e na velhice seca
seus olhos muitos deles
verdes olivados
outros casca de madeira
seus dentes brancos
abertos em abraço junto da
rosada gengiva
rosa como a palma
das mãos e dos pés em ginga
rosa como a rosa
na cinza e amarela terra remexida
abrigo também do caranguejo dourado
e do siri transparente
a música dedicada é oferecida de fora
e engolida lentamente e com gravidade
pelas mil bocas da maré
nenhum deles não ousa entrar no mar de janeiro
que é intenso de vontades e musgo-verde
mas crianças muito semelhantes se divertem ao redor
saltando na frequência das ondas de lodo
com sua espuma suja
cor de cobre denso como mercúrio e pús
com plásticos de cores lavadas das mais variadas
latas de peixes que foram enlatados
águas-vivas de supermercados etc.
tudo isso rachando o espelho d'água
e fazendo queimar as pipocas

Mas perto dali
lá nas praias claras
a água faisca cerúlea e é fresca
assim como a água de coco trazida pelas pessoas
para as sombras hominídeas e suas crias
impossíveis no sol porque absorvem ao invés de refletir
eles que esmagam com chinelos de borracha vulcanizada
os variados grãos de areia tão microscopicamente arco-íris
seus olhos são só íris e pupila uma coisa só
pretas e angulares
querendo ver sem serem vistos
suas mãos aqui e em outro mundo
eletroesquizofrenia
irradiando e emanando uma nuvem seca de zeros e uns
e todo tipo de onda menos de luz

Quem serão estas sombras que herdaram pessoas
coqueiros e praia?
(e que ainda se valem da purificação do lugar
que as pessoas os coqueiros e os caranguejos
fazem com suas danças de brisa e salar?)

Entre as praias
há quem leva as mãos para cima
e há quem leva as mãos para dentro
há quem pede para outros
e há quem pede por outros
há quem oferece espelhos
e há quem neles se olhe
há quem reinventa a vida com o seu corpo
e há quem reinventa o corpo para outra vida
há quem sobrevive agora para viver depois
e há quem vive agora para sobreviver ao outro.
O engano está nas duas praias
tomando gente por sombra
e sombra por gente.
A mãe quando vem
vem desfazer os enganos todos
acordar os enganados
e fazer justiça aos enganadores.

III.
Entre estas praias, uma baleia derramada
mandíbula na terra e rabo de peixe na água
seu olho grande como uma porta de fusca
para sempre aberto e fosco
e que não reluz.
Despontando de sua vértebra monumental
a ponta tri-dimensional faiscando enferrujada
de um contêiner desgastado por semanas de ácido estomacal
finalmente, agora, vingado, na estocada fatal.

Vencida por dentro
sobre-carregada dos metais e das vontades
animal do mar acostumado a nadar contra a gravidade
discreta mas permanente
cada vez mais
o peso presente
até a sabotagem lhe abreviar as descidas de pesca
e as subidas para o respiro
mais pesado seu nadar
embaraçado pelo feto de aço
alien divino, futuro natimorto
ou aquela que traz a morte quanto parida
filhote andróide de jubarte.

Da caixa de sapato de aço se propaga baixo
primeiro como chiado de rádio
ou conversa de riacho calmo
mas depois mais zumbido como
gritos de um filhote de bicho canto
irregular de canário agudo e assustadiço
com plumagem cinza-chuvisco e dentes verdes
triângulos de chips afiados
engolidor voraz de pilhas AA
que nos ninava com o coro de 1861
em 1989 remixada, Korobeiniki
uma canção de amor sobre blocos
de quatro pontos abstratos que se acumulam
em linhas fragmentadas ou perfeitamente alinhadas
até a sublimação
uma infinidade destes toques polifônicos
ou midis de uma banda de anjos limitada
mais incompetentes que Barnabás
mas ainda sim com uma mensagem

A mensagem é uma e a mesma desde sempre
a mensagem é a mensagem
a mensagem é a mensagem de que ao fim
da mensagem não há mais mensagem
e portanto
a mensagem anuncia apenas a si própria
nem mesmo isto
a mensagem anuncia apenas o fim e a finalidade
da comunicação
o fim da mensagem não é mais que a constatação do fim das mensagens
o único meio restante sendo os messengers.

(Mas a palavra doente
a doença da palavra nunca foi problema
para as poetas e os sacerdotes
a palavra sempre foi o anúncio da doença
a doença é a dificuldade da palavra
e a palavra doente é a única que vive
e viverá).

IV.
Matangi,
empresta a virulência da palavra real
para cantar como a mulher que conduz as águas
sai furiosa de dentro da caixa
como hidra sul-americana alucinada
com enfeites em látex lilás
florindo nos cachos de cabos e conectores coloridos
encaracolados na cabeleira afro-eletrônica
conectando aparelhos celulares
e outros aparatos singulares
de todos os modelos
ao coro do cabelo
vibrando como pulseiras
de velhas mulheres quiromantes
e chocalho de serpente de fibra ótica
chiando junto com a língua púrpuro-azulada
partida em estalos furiosos
como seu olhos que faiscam água
não como lágrimas
mas como uma tempestade que limpa
sua pele escamosa de azulejos azuis e brancos
lantejoulas lusitanas como as do céu de Campinas
seus seis braços espantosos vestidos alegoricamente de
musculoso, atrofiado, hábil,
estúpido, elegante e armado com garras
seguram espelho e espada,
cutelo e caneta, foice e martelo

Não a vingança de Xangô
ou perdão de Jesus,
mas a justiça comum daquela
que empurrou por anos com as franjas-ondas
do seu vestido de guerra e de festa
os pescadores armados com facões e lanchas
mas que numa sexta de zanga
tomou a tarefa para si:
se quer algo bem feito
faça você mesma. 

Janaína é a mãe dos órfãos,
é a Maria que resta neste terra e hora,
pois os deuses que são homens
honraram sua tradição
e já se foram todos embora.
Janaina ama
e ficaria até depois,
como Maria.
Ficaria sim,
é sua escolhida sina,
até mesmo depois do nosso fim.

V.
Sou mãe dos que são órfãos
meu nome é onda, é concha
meu nome é terra, é fruta
meu nome é chuva, é nuvem
sou mãe dos filhos todos
- Só há orfandade de pai
sou mãe dos velhos
e de seus filhos coloridos que já vêm lá
sou mãe dos filhos que têm todos os irmãos do mundo
sou mãe das filhas que têm suas mães por irmãs
sou mãe dos pais irmãos de suas filhas
sou mãe das mulheres sem filhos mães de suas irmãs
sou mãe de cada filhx que não é homem ou mulher
mas o que quer

Todas irmãs e irmãos e primos
menos aqueles que não são,
menos aqueles que abandonaram a família, a vida e a terra
Quem são estes?
Não são Édipo nem Eléktra
não cometem parricídio por amor à mãe
não cometem matricídio ao vingar o pai
Não são Caim
que mata o irmão por amor ao pai
Não são filhas de Lear
que matam o pai por amor ao irmão

Estes órfãos por escolha própria
tipo novo de matricida
matam o outro em si
para poder matar o mundo todo
- dos outros e de si
E assim não sorriem ao ver as pernas gordas de um bebê sadio
não se comovem com a alegria de suas irmãs apaixonadas
não vêem a continuidade entre os vivos e os mortos
as águas e as terras
uma uma e uma outra.
Extirpado de si o que não se é
só compreendem a fronteira.
Não a canção comum que celebra mineiros e cozinheiras,
só a bandeira.
Quem são estes que costuraram os próprios lábios para nunca sorrir?
Estes que me matam, a mãe, para calar a canção da verdade que diz
alegre e leve
que o outro é sempre um irmão?

Aqueles que não têm irmão
não são meus filhos
e não sendo meus filhos
não sei o que são.

VI.
As águas brotam dos seus olhos, senhora,
e encharcam as areias, vêm pelas ondas, chovem - aos poucos pisca-piscam as nuvens
traduzindo as constelações do céu
em pontos de vidro, pouco a pouco,
na areia da praia.
Todos os seus nomes escritos
em uma língua nova de força e segredo
mas preenchida por vogais e letras novas.
Saiam da água crianças pois o peixe será poupado,
mas os homens não.

- Uma chance mais, senhora.

Não os perdôo pois eles sabem o que fazem.

- Não há injustiça, mãe, só engano,
pedem pelas sombras.

Pedido de filho
ultimato
não os mato.
O último quinhão que lhes posso dar
a última mãe para os últimos órfãos.

Uma uma completa porque aberta
todos os mundos principalmente aqueles desconhecidos
uma igualdade sempre prenha
(talvez pela última vez).

VII.
Um vendaval de areia photoshopado por relâmpagos
uma passarela prismática entre as praias
um pier de cristal para nossas canoas frágeis
um areal espelhando pessoas novas e um céu azul,
por fim,
um caixão grávido de luz:
monumento à orfandade da humanidade.




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Tomaz Amorim Izabel, 27 anos, é poeta nascido em Poá, Zona Leste da grande São Paulo. É doutorando em Teoria Literária na USP, co-organizador do Dinossarau, que acontece no centro de São Paulo, e publica seus poemas e prosas há alguns anos no blog: tomazizabel.blogspot.com

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