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Ilustração: Edgar Alvarez |
Enquanto moro sentada aqui, na sala, o Buda me olha risonho. Na loja de quinquilharias da Índia o apresentava:
“Este Buda é na verdade São Francisco de Assis.”
A expressão de felicidade teria sido adquirida depois que colocou nas costas a mochila, um vaso de água pendurado numa das mãos, mais nada. Largou fortuna, largou palácios, largou seu pai, foi andar pelo mundo. Só mesmo privado de tudo encontraria um homem a alegria que meu Buda irradiava. Sorriso largo.
Comprei na esperança de que aquele ser apático que dorme enquanto fico digerindo esta insônia, aqui na sala, se possa mirar num exemplo digno. No fundo uma esperança que abdique de suas pequenas conquistas materiais, o carro, a TV gigante onde vê o maldito futebol, da poltrona nicotinada onde se diverte a flatular nos dias de ócio, largue tudo e vá viver uma vida de renúncia. Queria imergir no aquário obtuso da mente dele, saber que culpa tenho neste estado de coisas, que só eu pareço enxergar.
Pretendia naquele dia adquirir um livro de Sylvia Plath, edição rara, num sebo, mas o dinheiro tinha ido na balança Filizola em péssimo estado que comprei no ferro-velho. A peça demandou reforma mais cara que ela. Azeitada a maquinaria, voltou a pesar com exatidão, apesar de gasto o mostrador que indicava quilos e gramas. Parou aí a reforma da balança. Pintar e colocar um mostrador digno foi empresa postergada, tornando o gasto inútil e a peça esquecida num canto, imprestável até para efeito decorativo. Devia ter comprado o livro. Ou não, teria lido no mesmo tempo que dediquei à balança, acabava abandonado na estante, mais um objeto, outra materialização de um momento perdido, pra injuriar o vazio de sensações. Não quis pedir mais dinheiro a ele. Impossibilitada de viver dali por diante sem o Buda, comprei em seis vezes no cartão de crédito. Depois dava um jeito.
Foi deste mau uso de recursos que juntei a coleção de inutilidades que me dá sentido à vida. Vivo em sebos, ferros-velhos, sucatarias, lixões do espólio do quanto se ache inútil e largado à sorte, se é que de sorte se pode chamar o abandono. Uma comiseração pelos objetos abandonados, por crianças e velhos, quero pegar, cuidar, dar sentido, utilidade, razão. Meu acervo é um grande asilo.
Lembro de um negro velho, talvez não tão velho, um indigente, um carrinheiro que ficava na pracinha. Naquela manhã levei as crianças pra brincar e puxei conversa com ele. Estava amassando latinhas de alumínio. Tirava os lacres. Falou que vendia pra um travesti, pra fantasias de carnaval, por um preço proporcional bem superior ao quilo do mesmo alumínio da latinha amassada. Tinha quando muito cinquenta, um negro de compleição forte, aniquilado pelo álcool. Mantinha um ar de superioridade, umas narinas arfantes de búfalo cafre, cabeça quadrada de um deus de aldeia, um xangô. Vendia latinhas para comprar aguardente. Um litro por noite, senão não podia com a dor. Contou que tinha perdido mulher e filha num acidente, desgostou de vida. Vender latinhas.
Meu marido, aquela criança abandonada a quem quis dedicar meus cuidados, entretanto, recusava meu abrigo, meu cobertor quentinho. Quando conheci precisava. Meu pai sempre falava, dando um jeito de minha mãe ouvir a preleção, que uma mulher jamais larga um homem no lugar que encontrou – ou leva milhas adiante, ou faz regredir encarnações.
Olhando a barriga que ressonava, sobe e desce, um coração em peito aberto à cirurgia, quantas eternidades regrediu meu marido, voltou pra antes do sopro divino, barro imodelado. Quero largar este barro. Porque pensei isso? Claro, teoria das associações, ontem no sebo comprei um vinil raro de João Bosco:
...um choro soluçante que não pára
Piada suja, bofetão na cara,
E esta vontade de soltar um barro...
Quero soltar este barro, livrar-me desta prisão de ventre. Pra dar vida a esta merda de barro, só Deus mesmo. Não sou Deus.
Ele ronca. Volto pra cama, durmo também. Quando acordei, às nove, um domingo, tinha sumido. Não é disso. Queria que fosse. Preocupei. Celular:
“ Onde você está?”
“ No parque.”
“ Fazendo?”
“ Sei lá, pensando na vida, precisava ficar um pouco sozinho, refletir.”
Aquilo me tomou de tamanha alegria, aquele despertar, reação máscula à modorra da vida, passei a revisitar todo o encantamento do dia em que nos conhecemos. Aquela obesidade próspera era um troféu. Talvez eu cobrasse demais: eu mesma tinha ajudado a ficar daquela forma, a segurança de um lar e uma esposa dedicada. Consegui.
Aquele esboço de crise existencial me encheu de tanta esperança. Vai ver que entendeu o recado, talvez se mirasse no Buda, as papadas já tinha, largasse suas conquistas, seu carro, seus uísques, o título de clube, essas merdas. Talvez buscasse entre minhas saias uma túnica, cobrisse suas gorduras, tão meigas, búdicas, vestisse aquele sorriso do Buda e fosse andar pelo mundo. Eu, do meu canto, largaria as minhas também, coisas velhas, quinquilharias. Balança Filizola de volta ao ferro-velho, discos e livros de volta ao sebo, panos de volta à feira hippie. Seguir este Buda até o nirvana.
Tão somente para cumprir o protocolo feminino demonstrei revolta com a atitude inusitada, suscitar uma explicação que mais me apaixonasse:
“ Que palhaçada é essa? Pensar na vida, tá infeliz com o quê?”
Desligou na minha cara o celular. Exultei, um homem em crise, um sartreano, eu Simone, um louco refletindo sobre a vida, ainda que para chegar à conclusão de que nada faz sentido. Alguém que me entendia, minha solidão, meus objetos velhos, minha necessidade de cuidar, consertar, prover, dar vida.
Entendi aquele desligar como um choro incontido, um brotar de sufocados, a crueldade da vida batendo num bruto, num forte, meu homem, que ali chorava. Chorava pra mim. Eu pegaria ao colo, cuidaria, daria força. Levantaria mais forte e cuidaria de mim. Melhor aquele desligar que qualquer explicação ou pedido de desculpas.
Gozava ainda a redenção, não levou mais que dez minutos da ligação quando a campainha tocou. Era ele.
“Te peguei. Já tava nervosinha, achando que eu fosse ter um acesso de bichice, crise, depressão, né? Só desci pra ir no açougue. Tava com uma puta vontade de comer costelinha de porco. Achei umas maravilhosas, vou temperar e por na churrasqueira pro almoço. Tá afins?”
Ele trazia ainda, sob o sovaco, um plástico transparente que abraçava doze latinhas de cerveja quente.
Manoel Herzogé autor dos livros O evangelista (Romance - Patuá, 2015), A comédia de Alissia Bloom (Poesia - Patuá, 2014) e Companhia Brasileira de Alquimia (Romance - Patuá, 2013). Manoel Herzog nasceu em Santos a 24 de setembro de 1964. Em 1987, estreou com a publicação do livro de poemas Brincadeira Surrealista. Cursou Direito na Faculdade Católica de Santos. Foi finalista, com o romance Amazônia, do Prêmio Sesc 2009. Coordena oficinas de literatura em Santos, na Estação da Cidadania, pelo projeto Ponto de Cultura. Em janeiro de 2012 publicou o romance Os Bichos, pela Editora Realejo. O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi premiado pelo FACULT. Também escreve quinzenalmente uma crônica literária na coluna Cais das Letras, no site Cinezen: http://cinezencultural.com.br/site/
O romance Companhia Brasileira de Alquimia foi semifinalista do Prêmio Portugal Telecom 2014.