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Ilustração: Oleksandr Hnatenko |
Rua Paulo Roberto Rezende, casa 3
Dentro da casa
um quadro triste
um abajur de luz pobre
uma janela onde não pousa um pássaro
e, naquele quarto sem cor,
nada há!
Entre o pó da casa
e as plantas úmidas
não há cheiro
nada se tateia
o sofá castanho não está badalado
[não se senta uma nádega alheia
ninguém proseia nada
há anos.
Tudo é cais.
O piano desafinado
não merece uma mão
um pé
um dedo.
Quantas pegadas sujaram os azulejos
do corredor inóspito onde o pedreiro cuspia seu ódio puro?
Há insultos nos talheres
e nas panelas emporcalhadas sobre a pia manchada
[germes monocrômicos em sujidades multicolores
Quem jurou aos tapetes
deixar esperançosos sapatos
que pisaram em restaurantes cômodos
sem novidades?
É mesmo uma casa,
ou um cais sem porto este lar extraviado
onde não tem passos,
nem peças e pisos?
do que é construída esta casebre nauseabunda?
E o anfitrião
sonha e escreve de maneira fedorenta
por que é pobre na riqueza,
[ou por que é rico na pobreza?
É uma coqueluche este corpo
que se lava nas águas sujas do chuveiro
que de pingo em pingo
espalha imundície
no lombo de quem se banha.
Não há luz nas águas claras
entre uma boca e outra
[uma tem fome
e a outra é quebrada
Essa parede que não acaba nunca
é vazia como as poesias de hoje
como os livros doentes
sobre o rack hipotecado
feito de lenha defunta
no qual nada se rima
[nada se lê!
Há um abismo na cozinha
na mortalha das frutas que serão mordidas
por uma boca de músculo falecido.
Os quadros,
[é preciso quebrá-los,
fuzilá-los.
Cada risco.
Cada esperança.
As aranhas agonizam
na monotonia dos cantos,
os gatos rolam
na extremidade de uma alma
que vaga nos cômodos errantes
amarelados como dentes de algo tragado
entre o alcatrão
e as nicotinas mais desesperadas
[apagadas em um cinzeiro de pura
e ébria solidão.
Na patologia do quarto,
as músicas doentes emudecem
[e os livretos apáticos
já não convivem com os lábios
que há tempo
não os soletram
e não os operam
Nenhuma palavra barata foge dos ralos
nem nas mais caras torneiras.
Nem o coração mais se abate,
nem o couro se bate e se arrepia,
pois há um vaso morto na sala
e um fosco toca-discos sem agulha
que não tatua canção neste breve instante.
*
a tristeza é suja e encardida
a tristeza é suja e encardida
mesmo em dias de chuva
dias sem capas, umbrellas quebradas
toldos ou sombrinhas
pingos que caem tristes
sem tintas
trêbados
transparentes
escorrendo pelo guarda-sol
quantas gotas bebi em teus temporais de plutônio
quantas vezes me vi em preto e branco
feito um Chaplin dançando valsas mortas
boleros infelizes e tangos profanos?
só me resta apenas eu
sozinho e mentecapto
energúmeno e circuncisfláutico
bailando melancólico
debaixo do dilúvio, no umbigo da nuvem
atrás de pássaros castanhos
e estranhos guarda-chuvas perdidos
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Ilustração: Oleksandr Hnatenko |
Medida
tínhamos trinta quilos de melancolia
e vinte quilômetros de tédio
quarenta litros de amor
duzentos centímetros de dança
tínhamos metade da vida
e metade da morte
tínhamos três milímetros de paciência
e cinco metros de ignorância
oitenta léguas de palavras de homem
vinte polegadas de sede de outra mulher
quatrocentos dias em vão
setenta segundos de sombra na varanda
cinquenta minutos de corte
dezoito semanas de incêndio
doze horas gritando
e outras doze
calados
Entre os talvezes I
meu espelho
não funciona
[talvez
meu rosto
seja mesmo um tédio
e um mantra morto,
meus assovios
[talvez
meus sonhos
sejam murchos
como maracujás de gaveta
[talvez
minha vida
caiba num haicai
ou
numa poltrona magra
e obsoleta
[talvez
eu chova por dentro
mais que a chuva
que despenca lá fora
[talvez
eu me mude pra uma caixa de fósforo molhada
ao lado de palitos riscados
pra que não tenha
lampejos de luz
[talvez
eu derrame alguns prantos
pra regar o meu voodoo
[talvez
eu
precise muito
muito
de muito
pouco
[talvez
[talvez
eu
me contente
em ser o risco
do LP
que a vitrola vive saltando
[talvez
eu
me transforme em mil
nos estilhaços
do espelho socado
e multiplique
as minorias do meu ser
[ou
quem sabe
quando eu
vir a morrer
eu caiba nas covas
das bochechas da vida
Ubirathan Do Brasil é licenciado em Filosofia e bacharel em Psicologia. Atua como compositor, editor e colunista do Jornal Literário Elefante de Menta e publica novos autores pelo selo Editora Carrancas. Publicou Haicai na Marginal Arthur Nonato, 2012, pela BAR EDITORA e Onde foram parar meus guarda-chuvas, 2015, pela Bartlebee livros. Tem textos publicados na mallarmargens revista de poesia & arte contemporânea, Subversa revista literária especializada no eixo Brasil-Portugal , jornal RelevO de Curitiba, participou da programação do FLIV (Festival Literário de Votuporanga) e foi um dos escritores selecionados para o a revista BREU do Sesc Rio Preto. O autor está trabalhando seu terceiro livro de poema “domingo é um Deus de cadeira de rodas bebendo caipirinha em volta de colibris”