TEMPORALIDADE
Alguns amores param no tempo.
A pinta de Marilyn Monroe
Em formol
Ou algo como a autópsia das coxas de
Grace Kelly
Amor de revista amarelando
Mas não na memória da ausência dos
Fatos
Ou no desconhecimento de que fim levou o par de sapatos órfãos
De um primeiro ardor
(pernas e meias brancas balançando num muro que se supunha branco e
cuja estrutura não se sustentou)
hoje quem sabe a mulher que se desmancha em uma banheira com apoios laterais
para as suas desgraças
Não mais aquela boca cujo vermelho repintamos com o lápis mental
Para guardar o resto do gosto que há muito se perdeu do mundo real
Ou fingir que o fulano que morreu na casa de repouso sem reconhecer
As rugas no espelho
Não é o mesmo que em calças brancas e uma costeleta fabricada pelo
Engano dos anos
Esgotara a fantasia juvenil daquela que hoje só usa
Fraldas GG e cadeira motorizada –
Alguns amores atravessam o tempo.
E o desejo embora desbotado no olho e nos álbuns de retratos
Não é a ruína do que permanece
De alguma maneira intacto
Entre pares de óculos de grau cada vez mais incerto
E insuficiências que asseguram que um tipo involuntário de separação
Está cada dia mais perto
E cegueiras unicamente orbitais
E braços que mesmo reumáticos consolam
E uma pele macia apenas no intento
E pequenas novas conquistas diárias que sinalizam um pacto
Quando a cada manhã nasce um outro corpo
Deslocado da silhueta da noite anterior
Despedidas frequentes que precedem o renovar constante
De um mesmo sentimento
E mesmo em palmas brancas
Que acompanham o cortejo que nega o adeus a algo
Imutável mesmo não tendo mais rosto
Repostas mesmo em vasos quebrados que se sobrepõem aos lamentos
Perduram as mãos que enquanto se acreditam eternas agarram-se ao que para a terra a
Que tudo recobra
Não foi mais que um ruído
Cujo eco permanece no ouvido que ainda o escuta
A todo momento
SIGNOS
(Para Kurt)
Selfie em busca de si
Mesmo amor-fantasmagoria quando tudo
O que há são pernas abertas nos bancos
Do metrô e nas camas quando
Tudo o que há são buracos vazios e fluidos e
Pequenas raivas que somadas estragam os dias
Tudo o que há é prostituição e pelos pubianos que
Não mais me consolam e de quebra entopem os ralos
Rostos tristes na toalha de mesa
Flores doentes na penteadeira e
Lâmpada queimada no abajur que espera –
A luz é uma entidade que ignora janelas fechadas mesmo porque é
O escuro que revela
Se é preciso fotografar algo é
Porque já não mais importa
A imagem pesa mais que o momento
Se é preciso nomear algo é
Porque já não mais existe
A palavra pesa mais que o
Esquecimento
BRILHO
Um pai.
Lava o carro.
Depois espalha o polidor.
Esfrega, esfrega.
Como se avisasse a barriga de
uma mãe:
“te espero”.
Ali dentro ela carrega
O mesmo que ele o fará
No carro que esfrega, esfrega:
Fios de sonhos
Marcas de dedos
E o mistério da palavra escondida:
Desilusão.
Um riso, ainda pequeno, entre ferragens
Entrega
Na formação do brilho
Que nos olhos orgulho de um pai
A grande diferença:
Para uma mãe
Não há polidor
De reserva
Autor do livro Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014), Edson Valente é jornalista e também autor do livro de contos Refluxos (Ateliê Editorial, 2010). Cinéfilo admirador de Aleksandr Sokurov e Wong Kar-wai, corinthiano, não vive sem canções desesperadas de bandas como Dirty Three, Low, Tindersticks, Red House Painters, Antony and The Johnsons e The Jesus and Mary Chain. Nunca assistiu a uma luta de boxe, mas suporta ver sangue.