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de dentro - Joana Hime e Branca Escobar

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de dentro (Editora Patuá,2015), livro de poemas e fotografias/imagens, de Joana Hime (poemas) e Branca Escobar (fotografias e imagens) exercita práticas poéticas em constante trânsito, sem lugar demarcado, à deriva, inscritas no corpo erótico da escrita e na escrita potente do corpo. de dentro é construído na exterioridade, na tensão entre os atos de ler, de ouvir e de ver. de examinar o interior das coisas de fora. O livro é tecido como colagem de narrativas, atravessado pela força do jogo entre textualidade, visualidade e musicalidade.
As imagens e os poemas (um campo poético único) transitam entre três grandes espaços-de-partilha: a casa (lugar da memória, da pedra, das ruínas, das pétalas, das portas de sair); o corpo (lugar dos rastros, dos riscos, dos resíduos, dos afetos) e a palavra (lugar de fora, movimento que tira do ovo o “há feto” do que é inominável e indizível). 





MOLETOM

na mala arrumada
a memória do nome
agasalha o retrato

um moletom entardecido
aconchega-se árido
nas lãs moles talhadas
cujas gravuras adormecem crispadas do tempo

a manhã acolchoada
alinha os fios fugidos
do tecido ido
escapulindo o doce ardil do escuro dia

uma camiseta esquecida desabotoa as sobras
dos verões arrepiados de frios
recobrindo mãos que outrora aqueciam invernos
das vilezas
que cobrem o manto
da vila dos amados

uma manta aperta
delicadamente
os espaços da mala puída
removendo passados
afogados de hoje

um carinho anoitecido
acasala o casario da dor
pequenices amortecem
esses velhos montinhos

novinha em folha verde
deu uma volta em cada nota
que mais parecia uma anedota
talvez nunca existiu
e seu melhor se esvaiu
deitando-se num solo vazio




CORPO MURTA ( para Francesca Woodmam)

nas muitas murtas
muda a muda
corpo mouca
nua muda
despe pouca
mudas murtas

descasca a árvore de ser
rizoma é meio não ter
um mastiga meio
outro é meio inteiro

nas muitas murtas
par do corpo é caule torto
parte corpo é teu entorno
Nas línguas de folhas
no limbo das águas
mulher em pedaço
é feito embrião tragado

nas muitas murtas
a raiz das bagas
ovula vermelho
a árvore truncada
descabaça pele meio
o rizoma medonho
calcula o cabelo

nas muitas murtas
parece medusa
mas é milo de vênus
mamilo aos litros
da água de dentro

nas muitas murtas
frágeis flancos
transmutam os troncos
em ensombrados escombros
o corpo lapidado
na lápide do lado
é corpo pedaço

musas murtas
mutilam amorfas
as nuas esporas
dóceis mas mornas
as musas são tortas
os caules as portas
pro céu ... mortas

oco move um pouco
corpo muito pouco
murtas com corpo
corpo murta




PORTA DE CASA

te espero no longe
entre portas entreabertas
enquanto o perto aperta
te desperto no peito aberto
coberto de fatias de ausência
enquanto o aperto seca
te espero no ontem
entre vistas, aonde
estanca a coberta da ausência
ressecada
enquanto o perto aperta
me despeço em um pé de rabisco
em folha da resenha desfeita
uma mal traçada linha refeita
e no entanto o perto aperta
te escrevo ao meio
entre lados quadrados
porque palavras são o que nos restam
quando longe
te tenho no abstrato sonho
tragado da saudade da pedra
enquanto o peito seca
te espero inteiro
na paisagem da passagem
das palavras apertadas
das tuas linhas margeadas
te sou
no verso inverso da palavra
num avesso que me escapa
te sou em mim




BAU DO CORPO

no remendado guardado
soa ainda o pólen engalanado
o cheiro da polpa da memória 
aquece as máculas
corroídas de cupim.
eu passeava em tuas arestas
feito bicho arteiro
que cata manhãs invernosas.
o sol não briga
a surdina grita
quando os sem sentido
dos desguardados
se desligam.
desligo o mundo 
TRANS
MUDO
de mundo.
nas chaves da rua.
um osso duro se ouriça
muda.
a muda.
abarca na cidade
em claridade de sombras.
muda.
de medo.
engole o vazio dos ares cheios.
marionetes de retalho.
sem retrato.
só rascunho. 
a casca sem epiderme
quica cascudo.
só.
nos sótãos da rua
e os cadernos lembrados
acompanham o corpo.
emulam-se no mundo
perambulam nas avenidas
abrigando-se nos silêncios
o corpo baú 
estará sempre só.







A ilustração do poema Corpo Murta é de Francesca Woodmam , que inspirou o poema. As outras são as originais do livro, assinadas por Branca Escobar.





Joana Hime é escritora e produtora cultural. Graduada em jornalismo e mestra em letras, trabalha no mercado musical há 15 anos como produtora artística, pesquisadora e gestora de projetos na área cultural. Produziu os artistas Tom Zé, Gilberto Gil, Chico César, Mônica Salmaso, Paulinho Moska, Rita Lee, Arnaldo Antunes, entre outros, pela gravadora Biscoito Fino. Ainda na Biscoito Fino coordenou os Selos Biscoito Clássico e Jobim Biscoito Fino. Em 2003, idealizou a série "Cada artista e seu tempo" originado do projeto "Centro Petrobras de Referência da Música Popular Brasileira" que contém o livro "A Casa Edison e seu tempo" e o acervo discográfico de obras de 1903 a 1930, do pesquisador de Humberto Franceschi, abrigado hoje no Instituto Moreira Salles.O  livro , de dentro (Editora Patuá, 2015), é um experimento poético vinculado às imagem de Branca Escobar.






Autora das fotos e imagens do livro De dentroBranca Escobar é carioca de 1981. Graduada em Desenho Industrial - Programação Visual na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além de ampliar sua formação em cursos de programas gráficos, passou a explorar outras vertentes do ofício, como o design de produtos (através da especialização em desenho de joias no SENAI), de interiores (Universidade Veiga de Almeida) e estamparia (PUC-RIO). Vislumbra a faceta multidisciplinar do design, o que considera essencial para uma visão ampla da profissão. Sua atuação se materializa em variados projetos de direção de arte e agora empresta seu olhar em um trabalho experimental, ao sugerir imagens à poesia de Joana Hime.

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