Retrato
Essa mulher, que dorme agora,
não era assim tão pálida
e o seu corpo era outro
em outra hora.
Esse corpo de fêmea
não sofre mais do cio;
já deu filhos à vida efêmera,
no catre deste mundo frio.
Deste mundo frio
que como o rio passa,
deste frio mundo
que passa como o rio.
Virtualidade
As noites são incontroláveis;
as tardes, não se pode pegá-las;
nem as manhãs,
que essas são matreiras.
Pode-se amá-las inteiras,
pode-se amá-las a penas,
na memória, no retrato,
sem tempo, sem posse, sem mãos.
Latências de amor
Naquele tempo os dias amanheciam,
e as camas de palha eram cúmplices
de amores naquele tempo.
As meninas que já cresciam
não mais brincavam nas noites,
que estas eram dos meninos.
Os quartos das moças formadas
ficavam dentro dos quartos dos pais:
evitavam-se encontros noturnos.
Nos rios banhavam-se moças,
aonde moços não iam;
e as águas tocavam seus corpos,
o que os moços não podiam.
Mas a lua acariciava as matas;
e as grotas daquelas noites
gemiam, gemiam,
enquanto nos leitos contidos,
leitos das casas esparsas,
moços e moças queimavam
como em lamparina o pavio.
Nos domingos daquele tempo
saíam a pastar os gados
e, no adro da capela,
entre rezas os beijos dados.
Um nome para a ausência
Que saíste a ver no deserto?
Uma cana abalada pelo vento,
um camelo em seu passo lento,
um grão de areia no deserto,
ou uma pedra só em seu tormento?
Que saíste a ver?
Um homem de vestidos delicados,
uma mulher de vestes bem lavadas,
um pobre mendigando sem sapatos
ou um sapato sobre a areia e sem pés?
Que saíste a ver?
Talvez o nada que é tudo,
talvez esse tudo que não sabes.
Antes do profeta sobre a areia,
antes de alpercatas em seus pés,
muito antes da Serpente que cantava,
e muito antes do jardim e plantações,
perguntavam seres incontidos:
“quem é esse que se move sobre as águas?”
O rio
O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.
Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
As árvores ao lado
são lenhos que não passam.
Os cipós, o abismo dos barrancos,
as cercas de arame farpado...
tudo é silêncio ao lado das águas.
A areia, essa areia sem adjetivo,
que de árida e úmida
não se faz aérea,
é mera aridez
ao lado das águas.
E entre águas as pedras
são abandonos quaisquer.
São corpos, as pedras:
o grito que não nos veio,
a veia latente que dorme,
a via do intransponível.
E as águas correm sobre as pedras,
nesse espaço entre duas margens,
entre a areia e o ar.
Nos engana, o rio.
O silêncio que leva
é a fereza de uma foz,
no seu líquido, nas suas forças,
na sua queda.
Assim é o rio e seu cio.
Desconhece a sua direita
e a sua esquerda;
e o que leva em si
nem sempre é seu.
Mas ele não se importa com isso.
E vai levando o leve
que no breve habita,
porque tudo é leve
sem vontade hirta.
E vai correndo o rio,
nas suas curvas tortas,
levando o tempo e sua túnica,
sem parar, correndo...
(Des) motivo
Escrevo porque o tempo insiste
e a minha vida está incompleta.
Ora sou alegre, ora triste:
sou poeta.
Fujo das coisas fugidias,
no entanto delas é que eu faço
meu gozo, meu tormento e dias
no traço.
Nestes versos que edifico,
não sei se fico ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Este é o meu canto: um nada que é tudo,
notas do tempo em que, disperso,
sei-me entoando um canto mudo:
– mais nada.
Êxodo rural
A noite sobre o telhado,
indelével penumbra,
já não mais vê,
com seu olhar amável,
a presença de corpos
na escura casa.
As lamparinas na canastra,
cansadas
de iluminar a noite,
fatigadas desse ato tão nobre.
As lamparinas na canastra,
passadas;
e a casa nua
nesta noite de lua,
entre montanhas.
As lamparinas na canastra,
apagadas;
e a vida na vila vê luzes
de postes acesas.
Marionete
Agora eu estou sem hora,
despido do que enfim
em mim só era passante.
Agora sou esta mesa,
sou este banco, esta sala,
que têm a vida constante.
Sou na parede o retrato,
numa moldura de aço,
guardado de traça e tempo.
Agora eu estou sem fim,
e brinco no fim da tarde
com a morte que não virá.
Mas morre a tarde em seu fim,
e aos passos eu me desfaço...
Aos poucos já não sou eu,
aos poucos estou sem mim.
Moinho
Neste rancho pequeno,
de adobe e de silêncio,
dorme a pedra no sereno,
sobre águas que passam claras.
A moega é abandono no tempo
sobre a calha que não balança,
que ao milho não mais conduz.
A luz entra pelo telhado
sem acariciar o fubá dourado,
que outrora era a própria luz.
Entre pedras, águas, lagartos,
vive o passado de passos,
de vozes, de milhos fartos.
Essa pedra não mais gira,
não tritura;
é abandono nesse rancho,
nesse tempo,
sem pessoas, sem canções, sem fubá.
É uma pedra
sobre águas que o tempo não para.
Evaldo Balbino (1976) é poeta e escritor do interior mineiro. Nasceu em Resende Costa – MG, mas vive desde 1995 em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais.É licenciado em Letras, mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Desde 2011, é Professor Efetivo de Língua Portuguesa dessa mesma universidade, onde atua também como pesquisador de literatura. Estudioso da obra de Adélia Prado e de Santa Teresa D’Ávila, realizou parte do seu doutorado na Universidad Complutense de Madrid. Tem artigos acadêmicos de crítica literária publicados em revistas especializadas.O autor já recebeu 20 distinções literárias pelos seus escritos. É autor dos seguintes livros: Moinho (poesias – 2006 – Prêmio Estímulo às Artes da Fundação Clóvis Salgado e do Suplemento Literário de Minas Gerais); Móbiles de areia (crônicas – 2012); Filhos da pedra (poesias – 2012 - Menção Honrosa no Prêmio Literário Cidade do Recife); Amores oblíquos (contos – 2013 - Prêmio Braskem Academia de Letras da Bahia em 2013 e Prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro em 2014); Os fios de Ícaro (romance – no prelo –Um dos três vencedores do I Prêmio Saraiva de Literatura em 2014).