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O púrpura da noite - Enrique Carretero

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Ilustração: Christinne Blacker



a afável luz de inverno

a luz de inverno é afável de manhã,
reverbera o verde só de algumas folhas
e o roxo de algumas flores
que parecem gratas

por poder surgir em meio
a sombras azuis,
algumas nuvens passam
e ensombrecem e reavivam as cores

e o que faz essa borboleta amarela de contornos pretos
saindo do casulo no muro do prédio vizinho?
- o muro também é amarelo e o chão de alcatrão -

tudo é tão efêmero
e assim a solidão
não parece tão ruim;

minha cachorra,
sim, sempre volto à minha cachorra,
se estende aos meus pés, em frente à janela,
pra que a luz ilumine seu rosto cor de mel

e as nuvens
brincam com o sol:
ora a luz brilha,
ora esmorece



o hipopótamo e os saltadores mexicanos

teus braços gelados
e eu perguntava se você não estava com frio,
e você me dizia que não
com gesto de me deixa dormir

agora as nuvens se desfazem
numa garoa fria sobre minha cabeça,
sobre dunas e sobre um mar aberto

andamos nos rochedos de uma praia
de ondas bravas
e eu disse que a natureza era caótica
e você me disse que tinha uma ordem

e eu olhei para você
e agora não sei se olhei pra tua
ou pra minha fragilidade

ontem à noite sonhei que tocava as orelhas de um hipopótamo
num mar claro que se tornava escuro
que surgiam penhascos e saltadores mexicanos

mas eu desistia de pular
porque alguém fervia tartarugas
e lhes jogava sal em carne viva



o púrpura da noite

meus pés já pisaram neste lugar
e não são as mesmas as esperanças,
nem os sonhos, nem os desejos;
mesmos, talvez os medos

o peso do corpo se sente igual, aqui, nos calcanhares,
e a voz dos amigos não é a mesma
porque eles não são os mesmos

azul no assoalho

um turquesa se espalha pelos objetos rápido
como num papel de aquarela
e gotas de vermelho tingem as paredes amarelas

as unhas da minha cachorra
desafiariam os martelos de qualquer piano

e eu gostaria de jogar tinta branca no céu
só para desafiar o púrpura da noite

mas não o faço,
porque ficaria sem estrelas



elefantes no meu peito

o que faço com a minha tristeza?

se o som dos meus passos morre no chão

se minha cabeça está cheia de lembranças inúteis
se elefantes esmagam meu peito

se a velhice se aproxima com solidão
se nada do que sou perdura



                                                                              A María Luisa Bombal

menos a vertigem

as paredes se racham
o chão desaparece
o teto voa

e tento me agarrar a qualquer objeto
aos pés da mesa
ao batente da porta
às folhas de uma planta

tudo cai
menos a vertigem

então me solto e caio na densa e branca névoa

aquela que apaga os contornos
dilui o verde das árvores
ensurdece as vozes e abafa os barulhos




Enrique Carretero, nascido em Santiago do Chile, é poeta e tradutor. Formado em letras na usp, publicou seu primeiro livro de poemas, Travessias, pela editora Patuá em 2014.

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