![]() |
Ilustração: Christinne Blacker |
a afável luz de inverno
a luz de inverno é afável de manhã,
reverbera o verde só de algumas folhas
e o roxo de algumas flores
que parecem gratas
por poder surgir em meio
a sombras azuis,
algumas nuvens passam
e ensombrecem e reavivam as cores
e o que faz essa borboleta amarela de contornos pretos
saindo do casulo no muro do prédio vizinho?
- o muro também é amarelo e o chão de alcatrão -
tudo é tão efêmero
e assim a solidão
não parece tão ruim;
minha cachorra,
sim, sempre volto à minha cachorra,
se estende aos meus pés, em frente à janela,
pra que a luz ilumine seu rosto cor de mel
e as nuvens
brincam com o sol:
ora a luz brilha,
ora esmorece
o hipopótamo e os saltadores mexicanos
teus braços gelados
e eu perguntava se você não estava com frio,
e você me dizia que não
com gesto de me deixa dormir
agora as nuvens se desfazem
numa garoa fria sobre minha cabeça,
sobre dunas e sobre um mar aberto
andamos nos rochedos de uma praia
de ondas bravas
e eu disse que a natureza era caótica
e você me disse que tinha uma ordem
e eu olhei para você
e agora não sei se olhei pra tua
ou pra minha fragilidade
ontem à noite sonhei que tocava as orelhas de um hipopótamo
num mar claro que se tornava escuro
que surgiam penhascos e saltadores mexicanos
mas eu desistia de pular
porque alguém fervia tartarugas
e lhes jogava sal em carne viva
o púrpura da noite
meus pés já pisaram neste lugar
e não são as mesmas as esperanças,
nem os sonhos, nem os desejos;
mesmos, talvez os medos
o peso do corpo se sente igual, aqui, nos calcanhares,
e a voz dos amigos não é a mesma
porque eles não são os mesmos
azul no assoalho
um turquesa se espalha pelos objetos rápido
e gotas de vermelho tingem as paredes amarelas
as unhas da minha cachorra
desafiariam os martelos de qualquer piano
e eu gostaria de jogar tinta branca no céu
só para desafiar o púrpura da noite
mas não o faço,
porque ficaria sem estrelas
elefantes no meu peito
o que faço com a minha tristeza?
se o som dos meus passos morre no chão
se minha cabeça está cheia de lembranças inúteis
se elefantes esmagam meu peito
se a velhice se aproxima com solidão
se nada do que sou perdura
A María Luisa Bombal
menos a vertigem
as paredes se racham
o chão desaparece
o teto voa
e tento me agarrar a qualquer objeto
aos pés da mesa
ao batente da porta
às folhas de uma planta
tudo cai
menos a vertigem
então me solto e caio na densa e branca névoa
aquela que apaga os contornos
dilui o verde das árvores
ensurdece as vozes e abafa os barulhos
Enrique Carretero, nascido em Santiago do Chile, é poeta e tradutor. Formado em letras na usp, publicou seu primeiro livro de poemas, Travessias, pela editora Patuá em 2014.