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6 poemas de Kátia Borges

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Ilustração: Christian Schloe


Autoficção

A moça amarga ainda sonha
flores em datas festivas,
talvez gérberas,
sussurra em voz alta,
falsamente distraída, talvez,
na correspondência incompleta,
achem por descuido a pétala
esquecida de alguma efeméride,
que nem alegria (veja bem)
nem alegria trouxe
(anêmonas talvez).



Luto

Não haverá outro dezembro
como aquele em que beijei meu pai
pela última vez, a testa fria
de um homem morto.

Que ontem foi aquele
em que, juntos,
enfeitamos a árvore?

O silêncio é de ouro, me dizia.
Sinto em mim cada quilate



Efígie

Costura o sol no peito
pela parte de dentro
da blusa, como se efígie
reversa, o ano inteiro,
e no lado inverso escreve chuva.

Subverte as estações
por dentro e, no inverno,
orquestra flores,
enquanto o outono ainda
desfolha-se,
costura o sol no peito.


Ilustração: Christian Schloe


Kapalabhati

O poema perfeito respira no erro
que o socorre em kapalabhati.

O poema perfeito se esconde
enquanto respira
no erro que o socorre
em onze expirações contínuas.

O poema perfeito escorre,
em sukhasana, ujjayi-pranayama.
(bhastrikas como se rimas,
estrofes como se ramas,
dharmas como se dramas)

O poema perfeito brinca
entre os ossos do crânio.



Poema para ler em pé

Senhor, como será a vida
das mulheres altas?

Será que respiram melhor
no rarefeito espaço
de suas cabeleiras?

Senhor, serão mais vivas
as mulheres altas?

Suas ideias estratosféricas
quase roçam o azul,
não perturbam o voo dos pássaros?

Senhor, e as alegrias
das mulheres altas?

Longilíneas dores aguardam.



Aparição

As filhas da lavadeira
eram três meninas negras,
e eu me sentia melhor que elas
por estar do lado de lá do rol de roupas.

As filhas da lavadeira
vinham da periferia,
equilibrando em suas pequenas cabeças
imensas trouxas.

E nem podiam ceder à tentação
de alguma brincadeira.

Sentavam-se sérias e compenetradas no
[sofá,
com suas roupas muito brancas,

tão alvas que ainda hoje me pergunto com
[espanto
se as filhas da lavadeira não eram anjos.




Kátia Borges, 47, é escritora e jornalista. Publicou os livros de poesia De volta à caixa de abelhas (2002, Selo As Letras da Bahia), Uma Balada para Janis (2010, Edições P55) e Ticket Zen (2011, Escrituras) e São Selvagem (P55, 2014), e de prosa, Escorpião Amarelo (2012, EdiçõesP55). Seus poemas foram publicados nas coletâneas, Sete Cantares de Amigos, Concerto Lírico  para 15 vozesRoteiro da Poesia Brasileira - Anos 2000Traversée d'Océans – Voix poétiques de Bretagne et de Bahia", edição bilíngue organizada por Dominique Stoenesco, Autores Baianos - Um Panorama(2013, Secult/P55), edição trilíngue lançada durante a Feira do Livro de Frankfurt, e na Mini-Anthology of Brazilian Poetry (Placitas: Malpais Review, 2013).

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