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Uma Casa - Homero Gomes

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Ilustração: Oswaldo Goeldi


 A meus pais. Sempre presentes.


O velho

Sentado sobre a cerca, comida por cupins e pela umidade, vejo que ao redor da casa o brejo subsiste. Ele fede a esterco.
Pensava que após todos esses anos em que me perdi pelos caminhos, encontraria alguém pra atormentar além de meu pobre avô adoentado.
Ele continua gemendo em cima daquela cama dura de capim trançado. Não há o que fazer, ele só não vem me encontrar porque é teimoso. Muito mais do que eu consegui ser.
Ouço o soluço desesperado que o velho dá pra não morrer. Ele luta; não sei por quê.
O azul caiado da parede já está sumindo.
A vida dele, enquanto ainda tinha forças e família, já era um completo inferno. O que será que ele pretende com essa teimosia toda? Pra morrer não lhe falta nada; basta fechar os olhos.
Mas ele não fecha. Ficou cego. O ar daqui não é bom, ele deveria saber. O olho ganhou pus e agora está tão seco quanto a pele do infeliz. Mas o velho desgraçado não fecha.
Está aprisionando a nós dois nessa casa maldita.
Seria melhor pra todo mundo se nunca a tivessem construído. Aqui não havia nada, nada que realmente valesse a pena. Só esse brejo fétido.
O único que saiu ganhando com a nossa vinda pra esse fim de destino foi o brejo. Mas não sei o que ele quer de nós. Já tem tanto, é um nada que possui vida dentro de si.



O aterro

Quando eu tinha dezesseis anos, estavam fazendo o aterro que sustenta essa casa miserável, muitos dos moradores da cidade tentaram convencer meu avô e meus tios de que essa empreitada não era uma boa ideia.
Meu avô mandava todos para o inferno; achava que estavam agourando a construção.
Mas isso antes das mortes começarem.
Trabalhavam no aterramento, três ajudantes, meus dois tios, meu pai e meu avô. Não era fácil, eu ainda lembro o estado lastimável em que meu pai chegava de um dia de trabalho.
Os ajudantes começavam a trabalhar muito antes do sol aparecer. Depois meu avô. E, após amanhecer completamente, meus tios e meu pai. Todos os dias os sete lutavam para enterrar aquela terra lodosa. Ela dava voltas sobre si mesma, engolindo mais terra do que meu avô conseguia trazer.
Mas o trabalho precisou ser paralisado, pois um dia, quando meu avô chegou ao aterro, encontrou os três ajudantes mortos, enterrados até o pescoço.
O maldito brejo se vingara do que eles estavam tentando fazer.
Meu avô pouco se importou com a vida dos três ajudantes, estava mais preocupado com o tempo que perderia para encontrar mais três homens capazes de fazer aquele trabalho. E terminou de os enterrar ali mesmo.
Os novos ajudantes precisaram de um estímulo a mais para trabalhar em um lugar três vezes amaldiçoado. Toda sexta-feira era dia de churrasco; meu avô mandava buscar algumas poucas e feias mulheres da cidade e fazia a semana de todos ser esquecida à base de pinga e safadeza.
Isso até meu avô ser preso.
Os três novos ajudantes descobriram os corpos dos seus colegas enterrados enquanto tentavam aplainar o terreno, que não parava de ceder ao peso da terra.
Meu avô perdeu seus ajudantes pela segunda vez e um bom dinheiro, pois o juiz da comarca embargou a obra e o obrigou a dar um velório aos mortos.
Quando o aterro foi liberado, período em que todas as mulheres da casa e os netos mais velhos tiveram que trabalhar, o brejo expeliu sua pior maldição infame. 



O ermitão

Lembro até hoje de minha mãe chorando em meu ombro.
Sete sementes, sete meninas foram encontradas enterradas no terreno movediço do brejo.
O desespero foi imenso na cidade, não pela surpresa terrível, mas pelo passado ter retornado à superfície.



Tudo havia acontecido há três décadas. Quando o brejo ainda era um lindo campo atapetado que se esticava até o horizonte. Não havia rio e nem árvores, somente relva e alguns animais.
Mas depois que um ermitão desconhecido apareceu na cidade, vestido com andrajos e falando uma língua estranha a todos, o céu enegreceu e a umidade tomou conta do chão e das almas dos moradores.
Uma a uma, jovens meninas foram sumindo, até que sete noites de lua nova fossem preenchidas.
Após a sétima menina, durante a Quarta-Feira de Cinzas, uma enorme tempestade caiu; as gotas de chuva tinham cheiro de rosas e gosto de vinho. Animais morreram e foram levados até o vale pela forte enxurrada, mas nem um único raio caiu. Ninguém pôde sair de casa.
Por uma semana tudo era mar tinto.
Quando todos puderam voltar a seus afazeres, foram surpreendidos pelo brejo que não existia antes, mas que parecia vestir os mesmos trapos que o ermitão carregava sobre o corpo.



As meninas

Por muitos anos me desesperei ao entrar nesse brejo, agora não. Pra mim, isso não faz mais diferença. O que eu quero é seguir meu caminho. Mas esse velho vai ter que ajudar.
Por sorte ou por destino, acho que não ficarei sozinho.
Andando lentamente e de mãos dadas – mal tocando o lodo – sete sombras brancas se aproximam. Aceno de leve, não quero assustá-las, mas elas parecem que não me enxergam.
Somente quando chegam perto da cerca é que me cumprimentam. Os movimentos são lentos, alongados, como se precisassem fazer um esforço imenso para se moverem.
Cada uma delas leva consigo uma corrente amarrada à cintura. As argolas caem suavemente sobre a umidade lodosa do brejo.
De certa forma, até sinto pena.
Meu avô solta um gemido fraco. Penso que esse é o último, que depois estará acocorado em frente à casa.
Mas uma das meninas se aproxima e toca meu ombro, como se dissesse "não".
Elas alegremente seguram uma a mão da outra e começam a dançar ao redor da casa, como numa ciranda.
Como se aquela casa fosse um porto, um abrigo.
Esse velho está aprisionando a todos nós neste lugar. Consigo até ver um sorriso forçado naquela cara seca.
Ele precisa seguir seu caminho, o meu já havia iniciado, mas estanquei aqui nesta casa. Estou preso. Preso como as meninas.



O brejo

Seis delas sorriam, somente seis. Uma delas permanece séria, mas não triste. Como se soubesse mais que as outras. Como se sentisse mais.
Começo a desconfiar que meu avô não morre porque o velho brejo não permite.
A menina, então, me olha fixamente com os olhos negros da revelação: estamos todos presos pela beleza do brejo.




Homero Gomes (1978) é escritor, publicou o livro de poemas Solidão de Caronte (Patuá), que recebeu o prêmio Poetizar o Mundo em 2014, e Sísifo Desatento (Terracota), que foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura em 2008.

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