THIAGO E
orelha
1. é uma casa na cabeça -- encerada e sem madeira não tem porta para entrar: recebe a ressonância e esse som reside lá. 2. clareia o ir do cego -- seu sentido mais aberto. e mostra-lhe a cara do barulho ali por perto. 3. maquinaria que me deixa ereto. 4. canteiro de obras -- estribo martelo bigorna. 5. caixa do tímpano aos cuidados do otorrino. 6. vontade não te põe em pé -- e sim o interno ouvido. 7. quem tem transtorno de equilíbrio passa a se preocupar com isso. vai aprender palavra nova no hospital: vectonistagmografiadigital. 8. com vertigem e mal estar, suplica algo pra amparar. mas onde? não há nada com o que se pareça: é uma queda dentro da própria cabeça. 9. reabilita o labirinto -- deitado, em pé, sentado -- com roupas confortáveis -- pra cima, pra baixo. 10. você precisará fixar o olhar -- é o gancho para agarrar. 11. piracetam e cinarizina ajudam na circulação central três vezes ao dia. 12. sua freqüência se distancia da violência da microfonia. 13. mora também em página de livro antigo, mas essa não sabe dos brincos. 14. lugar pra compor o segredo de liquidificador. 15. criança danada tinha a orelha puxada pra lembrar do certo -- diz a história: a orelha é da deusa memória. 16. onde começa o saber. 17. ultraleve. 18. é concha sem mar na praia da pele e sob o cabelo espera um gesto que a revele.
OUÇA AQUI O POEMA
faixa do disco Cabeça de Sol em cima do Trem
produzido por Jan Pablo (Canis Vulgaris) e Thiago E
ADRIANO LOBÃO ARAGÃO
labirinto este círculo infinito
labirinto este círculo infinito
de som e espaço ocultando a saída
neste espelho perdido em meu ouvido
olhar mergulho viagem vertigem
labirinto neste íntimo caminho
nenhuma linguagem diz o que digo
toda fala guarda o mesmo destino
sempre repetindo o vício do giro
toda linguagem diz mais do que digo
desenha o tempo um eterno rabisco
espelho silêncio palavra origem
reflexo sonoro escutando o ciclo
seria a alma o delírio seria
labirinto este verbo substantivo
ALEXANDRE GUARNIERI
labirintite
ao contato incauto com quaisquer destas pegadas
presumidamente compassadas, os degraus de uma escada
sem direção ameaçam o estilhaço e mesmo no vácuo, é
necessário ocupá-los, sem chão, sob sério risco de se
despencar o paço; a rachadura aberta sob os pés, o passo
em falso, o corpo tragado por algum lugar onde nada é
certo ou faz sentido; se falham as pernas, abolido o
equilíbrio, resta no caos uma dança antigravitacional
banhando com choques elétricos o ouvido interno: seria
até possível aceitá-la, mesmo que não se oferecesse nada,
ainda que extinta a terra firme, por perto sequer parcela
de qualquer apoio ou nenhuma das partes mútuas ao voo,
simétricas, hélices ou asas-delta, o corpo entregue
à gravidade zero, planando sob a “garagem hermética”
da atmosfera, até que sobrevenha da queda, num átimo,
decerto a consciência da doença, de que jamais se poderá
confiar nas próprias pernas; segue-se a consulta médica,
a escolha da droga, a hora do remédio, estima-se o efeito,
o tempo de administração do medicamento; mais tarde,
recobra-se o centro de gravidade, todos são bem-vindos
ao refúgio do produto químico, injusto, sempre sujeito ao
abuso: ridículo à primeira vista, dicloridrato de flunarizina
(vertix ou vertizine, nomes fantasia, ajustam o labirinto)
o que está aqui, admita-se : é equilíbrio convertido em pílula.
* * *
Thiago E. Poeta de Testes. Relator de Processo. Músico e Compositor. Autor do livro Cabeça de Sol em Cima do Trem (com imagens de Joniel Veras). Integra a banda Validuaté, com a qual lançou os discos Pelos Pátios Partidos em Festa (2007), Alegria Girar (2009) e o EP Este Lado Para Cima (2013). É co-editor da Revista Acrobata : literatura audiovisual e outros desequilíbrios. Trabalha no CEAF do Ministério Público do Estado do Piauí. Com o grupo Academia Onírica, editou a Revista AO (2010 a 2012). Edita a coluna Intacta Retina, no Jornal O DIA, aos domingos, publicando poesia, prosa, artes plásticas, de diversos artistas. Em parceria com Jan Pablo, produziu o álbum "Cabeça de Sol em Cima do Trem" (2013).
Adriano Lobão Aragão nasceu em Teresina, 1977. Assessor pedagógico da Editora Saraiva. Coeditor da revista eletrônica dEsEnrEdoS. Autor, dentre outros, de Entrega a própria lança na rude batalha em que morra (poemas, 2005), Yone de Safo(poemas, 2007) e Os intrépidos andarilhos e outras margens (romance, 2012). A nova edição mantém o texto original da primeira edição de as cinzas as palavras, lançada em 2009 [do qual extraiu-se esta seleta] e que contou com uma tiragem limitada de apenas 80 exemplares. Site. Blog. Email.