duas cartas
1
querido Ginsberg
você que me ensinou sem ter visões é duro comer merda
seria mentira deslavada dizer que tô feliz
também não vou tão mal quanto Catulo lamentando à Cornificio
se bem que preciso dar um jeito de ganhar um pouco de dinheiro
cê tá certo quando diz que minha pequena não é nenhuma
Joan Burroughs grávida de outro cara e viciada em benzedrina
mas é mesmo é bem bom pra mim ter encontrado alguém que vez
em quando me envia esses Whats assim todo mundo sofre um
pouco, Lelê, mas tenho mãos milagrosas bocas várias na minha boca
como vê, o seu louco bróder não vai tão mal assim
embora você não me dê uma palavra da mais fácil nos seus poemas
da mais vagabunda mistura de coca e dança erótica e nem mesmo
o catchup azedo dos sandubas da realidade convulsiva
bom, espero que não esteja puto comigo
sabe, não tenho tido muitos amores a não ser o dessa guria bi
de cabelo preto enrolado pernas de quem vai de bicicleta e vive
embrulhada em casacos de lã e não sai dos teatros e da São Francisco
ah, Allen, quando a gente tem a promessa de brincar
de Guilherme Tell quase todas as noites
2
ei ei, Sarah Kane, a coisa não é leve nem doce
suas peças são alguns dos buracos mais amargos onde já me meti
ninguém devia entrar lá mas suspeito que isso não vai ter fim
vem da doença ou da maravilha da doença
hoje minha mão não dói tanto acho que porque tá calor
mas continuo intoxicado pensando que escrever é um modo
de não se saber absolutamente nada sobre a existência humana
viver estupidamente escrever bestialmente deixar-se amaldiçoar
depois virar matéria de análise? nada pode ser tão simples
enquanto tenho caninos devia arrancar pedaços da sua cara
lembra aquela noite em Londres a gente esculhambados
saindo do pessimismo pedra de amolar do velho Bernard Shaw?
a gente pode achar que o mundo é mal mas pense nas pessoas
que você conhece a maioria delas é má ou boa? então então
foi bem esquisito ter ouvido algo tão meigo vindo de você logo
quando a madrugada soprava Desolation Row na copa das árvores
afugentando morcegos e outros mamíferos que não podem voar
algo está sempre se desfazendo, né, evaporando
a gente entrou naquele pub e você ficou ensimesmada tendo
sei lá que iluminações enquanto dava bicadinhas na cerveja
você tinha voltado pra um lugar só seu impenetrável um espaço
que as meninas espertas que conheço jamais suportariam
você deve gozar com isso mais do que qualquer outra pessoa
a menos que eu pense em Artaud Van Gogh Nijinsky Lautréamont
in dono osso do delírio transmutados voltando a ser palpáveis
só quando nos autorizamos tocar suas carnes de labaredas
o homem sem cabeça
não resolve apelar pra inconsciência guardar pecadinhos no baú
vir em cálculos enriquecer fazer o pacto com elegância tratar
tudo feito tatu tatu na terra se esconder dar a maior gargalhada
representante dos chatos com não empine o queixo não vire a cara
o que de semideus nascido das suas coxas que instaure o Apocalipse
e bisturis de um só talho todo tipo de trapaça arapuca engodo ardil
quem tem pena é galinha e toda a agenda preenchida do dia a dia
quer desfigurar o seu amor do peito e encarnada comer suas sombras
tem veneno na beleza? digam os charlatões do ah eu sinto fundo
ah se você soubesse eis o bom-bom do lado bom da força aaahhh
que tipo de outdoor ridículo qual o conceito de espelunca humana
a verdade seja a do labirinto infinito é o que temos de mais próximo
do Paraíso Deus falar apenas aos que estão na merda e até nisso
vem o pseudocientífico ou Deus colecionar perdas e pronto mais
uma vez o Homem Sem Cabeça dar e dar com a testa na parede
espírito da obra
o espírito da obra ri da minha cara
nunca fui um vagabundo como os que me inspiraram
com poemas que são a única poesia sem o medo embutido
de que já se teve ou não notícia, dentro de uma meditação
sem a sabedoria pendurada está o vale dos sem amor
porque da história humana(milênios, eras inteiras)toda qualquer
memória sofre de Alzheimer declínio do intelecto
mas até as plantas são feitas de vísceras e volição
na eternidade nem mesmo as pedras são imortais
nossos defuntos fazemo palimpsesto da terra e não é
qualquer um de vocês que pode me contaminar ao ponto
de eu baixar e baixar e baixar os olhos na curva da coluna
nunca fui um vagabundo e como disse Octávio Camargo
citando Aquiles à Príamo (Ilíada, canto 24)viver sempre
em tristeza é lote humano, existir sem cuidados é dos deuses
desejei ser poeta como a irmã do Rubinho quando ele
tem que ver, Lê, como a mana faz bonito
hoje é dona de casa, o marido dela quis a esposa exemplar
mas tá na guria força corredeira, ânsia da natureza
não sei se e o quanto resta de doçura no mundo
não é só às vezes que esqueço os espaços descartados
cheios de amarga resignação dentro de mim e as máscaras
d´enxofre que me deformam em disfarces a face
em que lugar nenhum reside a realidade? sequer lamento
claro que já vagabundeei e nem sei ao certo se desejando
ser a pequenininha estátua de um bêbado agarrado
a um poste (ele mexe a cabeça pra lá pra cá assobia a melodia
mais triste do mundo) herdada da vó Stella
uma coisa afirmo outra pergunto ou são amnésias
pode que pais da preocupação me achem o louco da exclamação
e vai que sim ou é só como o osso é agarrado ao nervo
como o cachorro é vítima do osso eu ser poeta da canção
o punho uma raiz as frutas ter um prazo as sementes ser um plástico
o espírito da vida ri da minha delicadeza e a mão organisma
criaturas-letras frases talentos vivos parágrafos apunhalados
sou um dervixe girando em transe (CeesNoteboom) com
mil mãos congênitas, delas tudo vive ou simula que
meu corpo desconhecido subindo de assalto, o poema
não é poema se não se dá como extemporânea oferenda
não são todos vocês que têm o que me fazer chorar
sou feito de fúria fígado fim após formas de fecundação
direções de luz no inviolável das maçãs do Pecado Original
e este lugar tão parecido com o gigantesco Sebo Lider é o vale
dos que apostaram tudo no amor e perderam cosmos murmúrios
estes incansáveis opositores das sombras operam a invenção
e jamais deviam implorar que lhes ensinem o que viver
se o amor é minha biografia (Murilo Mendes), das exegeses
eis a lama mais exigente o livro legítimo menos legível
não não é qualquer um de vocês que pode me fazer
querer morrer querer morrer e querer morrer
aparentemente
a primeira dama caindo no choro
o presidiário aprendendo a fazer tricô
o doutorando indo caçar ruas na madruga fria
o gótico cheirando rapé no cemitério ao meio-dia
o irmão encontrando alguém pra odiar fora da família
o latifundiário chegando no mar com um pranchão debaixo do sovaco
a jornalista ardendo de amor por um mundo que não volta
o matemático tentando atravessar a linha do horizonte que foge
o mau hálito na manhã de uma cidade imutável
o ator pornô fazendo sua festa de aniversário de 77 anos
o religioso fundamentalista prestando vestibular pra história
a costureira costurando um rasgo na própria carne
o ativista ecológico surrando os filhos bagunceiros
o governador tendo a cara pisada esmagada mijada por quinze mendigos
o prosador tradutor tatuador sofrendo a experiência de ser usado
o historiador abrindo a franquia de uma hamburgueria
o promotor público tendo a sua primeira crise de pânico
o mau hálito na manhã de uma cidade imutável
o rei do camarote perdido numa aldeia indígena que não aceita o seu cartão
o guardador de carros autopunitivo
o xerife secretário de segurança de vestidinho rosa levando
forte no rabo e gritando é bala neles
o pai de santo recebendo a si mesmo
o turista pisando pela primeira vez numa capela mortuária
o poeta fazendo um bico de juiz de futebol no fim de semana
a estudante estudando guarani na praça de alimentação do shopping
o mau hálito da manhã de uma cidade (aparentemente) imutável
alguma coisa na solidão de um homem
verá se as ruas dormem e em quanto tempo
alguma coisa na solidão de um homem já
tem mais de oitocentos anos alguma coisa
na solidão de um homem caminha na vastidão
do quarto alguma coisa na solidão de um homem
já superou a moda a moeda o merecimento
alguma coisa na solidão de um homem fixou
numa saudade de cinquenta anos antes alguma
coisa na solidão de um homem é imortal e está
morta alguma coisana solidão de um homem
não chegou muito depois da euforia alguma
coisa na solidão de um homem avança veloz
como a ferrugem alguma coisa na solidão de
um homem está bebendo circunstancias alguma
coisa na solidão de um homem são os dois pés
enterrados na geada alguma coisa na solidão
de um homem não sabe o que é ser feliz
nem o que não é ser feliz
Luiz Felipe Leprevost, poeta, escritor, ator,compositor e homem de teatro, Leprevost é um dos nomes mais ativos da cena artística de Curitiba e se contorce igual a um Dragãozinho Ferido. Lançou o livro/CD Fôlego (2002) e Tornozelos deitados (2005) e o livro Ode mundana (2006). Escreveu e dirigiu o Butô de Mick Jagger.