'Inspirado o xamã entra em transe e cai inconsciente.
Pode desaparecer seja para voar por terra distantes
ou morrer e ressuscitar. O xamã é um protótipo arcaico
da cultura, que cruza os sexos e domina o espaço e o tempo'. Camille Paglia
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Foto| Subhankar Banerjee |
A DIVISA - Road Movie
Fricção em prosa poética inspirada na viagem real de Marcelo de Trói a América em 2012 e remexido em 2015.
tratores tratores tratores
1, 2, , 11, 15., 36, 54, 55, 56 77, 81,82, 88
foram ultrapassando
eram tantos
99, 100, 101, 111, 112, 133, 158
cansou
zonza bufou
perdeu a conta
atchim dormindo no Alasca,
sonha
circula conversível no tórrido Arizona,
sonho
deserto inicial,
engoliu peiote mirando uma naja e sua fluida dança rastejante,
fitaram-se
viu na língua bifurcada da pescoçuda uma entrada para o submundo da memória racial,
entrou
sentiu o sutil movimento da placas tectônicas debaixo do carro,
tritritritrimelicando
de dentro da terra saiu tatu
do calor do concreto subiram vapores
de ambos os lados da rodovia vestígios da pré-história
as quatros rodas rodam
último trator,
ultrapassaram
andrógino motorista
na auto estrada mulher metralhadora com burca,
adiante,
um belo horizonte surge repletos de coelhos,
e uma única árvore frutífera rodeada de abelhas
ventriloquio camelô canta Bob Dylan
indo
uma limusine oculta com o vidro fúnebre cantor rock roll entediado uísque
vindo
uma obsoleta armadura reluzente em cima de uma caminhonete
a idade média atravessa o deserto,
uma senhora negra caminha no acostamento levando Blues,
pneus giram
ovelhas desfilam na beira da estrada,
lagartos entre cactos,
cavalos esquálidos passeiam cadência na pastagem árida
quando eu morrer tu pra mim vai desaparecer
sinais de fumaça, invenção de índios americanos
hoje apenas alerta de incêndio ou anúncio de eleição de Papas,
sua histeria de herculana, muda
em paz consigo mesma
podia ouvir as vozes secretas das coisas:
o vento lambendo montanhas,
a erosão lapidar pacientemente as rochas duronas
cineasta voa mecanicamente wim wenders na grua,
asas sobre o seu desejo
vem a noite
árvores na sombras surgem ressecadas como espectros retorcidos,
paisagem de passagem
chão secura rachado
moitas, matagais, raros
faróis
olhos acesos na escuridão da estrada
luzes na treva cheia de curvas,
asfalto:
serpente a mover-se iluminada
placa suspensa indica outro Estado:
com o resíduo de homem que na mulher ainda habita,
conclui
com a chuva no Alasca,
desperta
madrugada lá madrugada aqui
e o pensamento-conclusão revoa afoxé
mosquito passeia na testa
se agora eu morrer sem renascer
tudo pra mim vai desaparecer
alto mar revolto
astros e estrelas tensas dissolvem se como em Van Gogh
um asteroide só mostra-se voando infinito.
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Foto| Subhankar Banerjee |
COLORADO - Ghos Writer
Fricção inspirada na viagem real do jornalista, fotografo, escritor, do multimidia Marcelo de Troi a América 2012, remexido e remixado em 2014. Escritos de para entreter um viajante em terra estrangeira com saudades do Brasil. Oferenda para Stanley Kubrick.
Despertou com o som alto do movimento da hélice de um helicóptero,
madrugada de um domingo
os olhos estalaram no teto
ouviu uivos distantes de Allen Ginsberg
dormira em maio acordava em junho
a lua estava encaixada no retângulo da janelinha
ninguém ao lado, outra vez sozinha
achou apenas um bilhete
caligrafia muda em cima da escrivaninha
"volto para o Meio-Oeste,
contato só através do facebook,
pago o hotel,
as lembranças são nossas,
deixo-as aqui com o que restou do meu cheiro"
adeus sem a viva despedida
o cara pálida foi embora com a sua camiseta Apolo 13.
sua boca salivou saudades da ausente virilha,
sua mão de abrir a braguilha,
lagrimou iluminada
o amanhecer apagou a lua
em jejum e sem banho saiu do hotel barato
alugou outro carro com motorista:
um cubano que conhecia Bezerra da Silva
contou piadas politicamente incorretas
sobre Fidel Castro, Obama e americanos,
na estrada sinuosa, espremida entre imensas paredes rochosas
ouvia Talking Heads, sua trilha sonora, nos altos falantes
https://www.youtube.com/watch?
vulnerável viu abismos
minúscula os picos brancos,
gelada a terra vermelha do Colorado
útil paisagem fria,
adeus melancolia
deparou com plantações de maconha autorizadas,
orgulhosas exibiam seus códigos de barra
passaram em frente do imponente Hotel Overlook de O Iluminado
lembrou do genocídio dos índios
e do sangue escondido embaixo da grama,
misturados a água, a raízes, a lama.
pararam numa estação de esqui
desceu
a cada pisada deixava na neve pegadas
equilibristas deslizavam macios na ladeira branca
assistidos pela babel de turistas
no buffet a fila não anda,
impaciente falou alto puta que pariu
alguém emendou um buceta pra chamar a sua atenção,
se apresentou
cientista, gaúcho de Brasília
almoçaram na mesma mesa,
mastigaram a comida tipica afiando a língua matria
confessou que estava maior abandonada
ele era financiado pelo Ministério de Ciência e Tecnologia,
tinha verba tinha dinheiro, mas não o domínio da escrita,
precisava de alguém para escrever seus textos,
escrever um livro sem assinar,
um Ghost Writer,
pagaria bem e em dólares,
aceitou sem hesitar,
estava pronta pra virar fantasma
e mergulhar em outras praias mesmo que fossem geladas,
Alasca
próxima parada
ficou arrepiada.
partiriam no dia seguinte para uma longa estadia
despediu se do simpático cubano
ganhou um pacote de maconha legalizada
dois charutos legítimos e uma garrafinha de rum Serrano
deu um cd Caymmi e uma coletânea Carmem Miranda
mas cantou Tulipa Ruiz,
batucando a amarela lataria
https://www.youtube.com/watch?
disse adeus mais de uma vez
com um beijo democrata na testa do sonho americano
e um viva Cuba, um viva os cubanos
levando o seu sorriso "dois dentes de ouro"
ele desapareceu na primeira curva assobiando 'Efêmera'
tremendo de frio
esquecida do dono do bilhete, mas com saudades do Brasil
chorando entre estrangeiros
dizia batendo os dentes
amanhã Alasca,
amanhã Alasca
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Foto| Subhankar Banerjee |
ALASCA
conto de inverno em prosa poética, escrito em 2012 e remixado agora em 2014, embora inspirado na viagem de Marcelo de Troi a America, o texto é pura fricção, seria inverosímel se não roçasse a realidade, com phala brasileyra, entretenimento vidente, para um amigo em terra estrangeira;
A festa dos mortos, as caveiras,
o mexicano com quem fumou haxixe
e se equilibrou na linha da fronteira ficaram para trás
Guadalajara,Tijuana e Cidade do México são projetos de futuro,
Sobrevoava agora o norte do Alasca com a identidade diluída
estava chegando
iria pisar em gelo,
sentiu calafrios
diante de icebergs azuis
da nova paisagem:
do horizonte límpido,
da luz cristalina nas enormes geleiras
assumia o novo papel
Ghost Writer
quem diria,
que virada:
em vida virou fantasma!
teve a temporada prolongada
o inesperado alterou o seu roteiro
foi desviada a viada para esse pedaço do território americano
não incluído e muito menos imaginado
ou sonhado pelo seu cérebro febril e obsceno
do jatinho
o sol branco brilhava triste
pousavam numa base
onde militares jogavam baseball com casacos pesados num campo de granizo
o cheiro do mar e de peixe invadiu o seu nariz
atchim
dilatada as narinas
tremia de frio
fazia brurrrrr e vapor com a boca
em algumas semanas arranjou um novo amante
com quem se enroscava debaixo de grossos cobertores,
quente, abriu o coração com confidencias
ele entrou, com tudo,
deixou de fora só os testículos
apaixonou
apertou seu corpo fofo na farda militar condecorada
pediu fica
engasgou o inglês olhando tesuda as botinas lustradas
agora
no cubículo do banheiro
intrigada,
isolada com a dúvida
agachada no vaso da privada,
repetiu baixinho como um mantra
enquanto limpava o intestino da sopa de barbatanas,
merd
merd
merd
Nenhuma impureza no branco, nenhum barraco, nenhum negro,
nem terreiro, nenhum campinho de várzea, calor dos sertões,
carnaval de rua, mata atlântica, floresta amazônica,
festa junina, carne de bode, feijão,
montanhas de Minas, Rio 40 Graus, sotaque pernambucano,
maracatu, Niemeyer, Morro do Alemão,
divisa com Uruguay, pássaros da manha
rio São Francisco, bruxo de Juazeiro, Anderson Silva, bossa nova foda, abaporu, chapadões, Corcovado-Espirito Santo, obvio ululante,
candomblé, cataratas, galos na madrugada, poesia de Carlos Drummond,
haitianos, samba de roda, fundo quintal, pampas, urubus, camelôs,
Superlajes, periferias, mulatas, , manos, malandros, limão,
molecada descalça, malemolência baiana, bananeira,
azeite de dendê, açaí, tapioca, cachaça, Corinthians, Itaquerão
levou a cabeça para esfriar no abaixo de zero
como é bonito: tudo branquinho
como é misterioso o sol da meia noite
mas não
não queria nem viver, nem morrer
acomodada aqui
sempre vestida com pesados casados
muito menos insatisfeita, numa guerra fria,
destilando seu veneno sem remédio contra a bela paisagem,
os exóticos nativos, ursos polares e as enormes baleias.
faltava mais algumas semanas
terminaria o livro
depois bye bye gotinhas de gelo
temia entrar num nevoeiro
ao dizer sim
com registro em cartório
cumplicidade de padre
num ate que a morte vos separe
num pra sempre amem
viver casada, disciplinada numa rotina militar gringa
e ficar intricada numa busca incessante do happy end de cada dia
enquanto o Brasil te chama te chama
volta pra mim
pro meu braseiro
mas antes Mississípi e Nova Orleans,
e em flasback, México também em conto, a velha fronteira de Tijuana
aliviada com a decisão
pediu para exu abrir os seus cruzados caminhos
cantou como um ponto um poema de Rimbaud
cadenciado em palavras percussão
longe do verão
dançando o canto falado pra tudos e todos
pr'um destroço espacial abandonado
pra distante Sibéria, do outro lado
pra uma foca boiando num bloco solto de água congelada
pr'um barco bêbado agitado pelo vento
cantou
com a carne trêmula
cantou e dançou
tatuando com pés o chão glacial com pegadas momentâneas
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Foto| Subhankar Banerjee |
X - caminhos cruzados - X
Inspirado na viagem real de Marcelo de Troi a America em 2012, remixado agora em Julho/14. Em prosa poética, faz parte da série road movie, continuação de 'ALASCA', fora da ordem e desordem brasileira. Qualquer semelhança com a brutal realidade é mera coincidência, embora descadenciado seu tom não é exaltado
A pedrada virtual socou lhe a cara
desenhou um raio imaginário de ponta a ponta na tela do lap
e uma cicatriz real na sua consciência de Herculana
levantou a bunda ha dias pregada na cadeira
saiu do bombardeio virtual,
depois de 3 meses blindada
estava de volta as ruas.
O vento lambia tudo
foi engolida pela neblina
talagou o uísque
desceu como fogo,
queimou o estômago,
contra um cortante chuvisco fino sua face fria
e o ranger dos dentes brancos
Silêncio mortal nas encruzilhadas não viu mendigos,
não trombou pedintes
nenhuma casca de banana
nem bitucas de cigarro no asfalto nevado
apenas um urso distante em luta noturna com seu alimento
enfiava suas garras numa frágil e indefesa presa,
e baleias invisíveis que emitiam som do escuro
profundo é o oceano
uma luz amarela saia pela fresta de uma abandonada capela
empurrou a porta antiga
bebericou mais álcool
entrou
pra praticar o seu sincretismo religioso
trupicou no degrau
desequilibrou se,
cai não cai
quase ficou de quatro no estrangeiro
se viu caída no corredor no meio da secular sabedoria
diante de paredes descascadas
e dos olhares bondosos das imagens douradas
não caiu
ainda bem
não queria ser pega descontrolada como o lobo de Wall Street
não saberia tirar graça nem rastejar como Leonardo di Caprio na película premiada
uma aranha escura passeava no rosto de um anjo estátua
uma vela tremia quente dissolvendo a sua cera.
mantida acesa ritualmente todos os dias
a fé iluminada se renovava aqui há mais de 100 anos
o trágico voltou a assombrar o seu coração
caminhando em direção ao altar tentou orar o pai nosso
dizer mantras
mas confusa lembrava de frases de peças rodrigueanas
e de 'a morta' andradiana em luta no ringue cerebral
frente a frente com um santo desconhecido
ajoelhou,
o assoalho rangeu suas tabuas,
sussurrando disse uma oração inventada.
pai nosso que estas onipresentemente ausente
seja la quem seja, onde quer que esteja
se caminhas na água ou nada no cosmo roçando estrelas
transformo meu ceticismo em uma reivindicação santificada
humildemente te peço através dessa prece
direto desse minusculo planeta a boiar na imensidão
a girar em torno do sol, astro-rei, deus também
que as minhas vontades se possível sejam realizadas
sou esse grãozinho que daqui te acena
oro pra chamar a sua atenção, oh todo poderoso,
pra esta minha frágil e fria solidão
minhas palavras de ordem são
liberdade na liberdade
inclusive nesta escrita
paz e amor mesmo na sordidez
e ate quando eu estiver entre verduras
frio nos ossos
ingeriu mais uísque olhando dentro dos olhos desenhados das esculturas
precisava embebedar pra esquecer de si
forcar a intuição leva-la aonde a racionalidade não chega
criar desordem na razão
a bebida faria esquecer de suas certezas onde se equilibrava
do seu ego inflado que precisava ser esvaziado e reduzido ao nada
e de volta ao caos, livre de todos os rótulos,
no todo coletivo ser outra vez reintegrada
alucinada viu no vitral um rosto sensual
ao seu redor,uma luz cristalina pairava sobre o ambiente poeirento
é
o sagrado não esta apenas nas coisas puras, nas coisas limpas,
um padre surgiu por trás
embriagada
ia pedir desculpas pela invasão da meia noite
mas a mão branca interrompeu a reverencia
foi conduzida para um outro recinto
tranquilo apresentou um cigarro em papel seda
em comunhão fumaram a erva
ávida sorveu o vinho oferecido
será esta quase ruína um pedaço do paraíso perdido?
confessou:
sou devota do rito dos terreiros
descreveu o culto aos orixás
caricata e exagerada,
mostrou batendo a mão na xana como é uma pomba quando baixa
riu muito contorcendo-se na cadeira,
molhou com urina levemente a calcinha preta
fez sorrir o religioso ao confessar que era mulher com pecado
uma ativista de si mesma
ele estendeu uma fotografia
congelado em preto e branco se exibia ao lado de um ruivo menino
já namorei com crucifixo e com essa veste,
sentado no confessionário atrás púlpito
a volúpia não me abandonou e eu muito menos as minhas crenças
vivo no meio desses embates
sou o troféu ao mesmo tempo o alvo
em mim ferve a contradição humana
domei minha natureza, mas ela continua como um redemoinho em mim,
mas prefiro viver aqui nesse circuito fechado,
do que ser burocrata do estado,
do 'o capital' escravo,, cobaia de teorias equivocadas,
iniciei menininhos nos rituais divinos
tirei algumas vergonhas e fiz sair leitinho
já orei em todos os cantos,
amei calado com a cumplicidade dos mudos sacrosSantos
já me peguei pensando obscenidades durante a missa
puc que pariu
atordoada com a transgressão se sentiu quase santa
lembrou de Almodovar 'maus hábitos'
e do padre mestre cachaça do ator comedia Emilio Serrano
o crucifixo piscou
devia ser a droga, a mistura de drinques
riu discreta um hihihihi, aproveitou furtou a ponta
sob a luz dos castiçais
tudo ali parecia divino
o eclesiástico caiu em prantos
a frase 'só acredito em homem que chora'
estourou na sua memoria como um slogan
comovida abracou,
beijou boca com boca,
borrou de vermelho o homem da batina
encharcada,
alcoolizada saiu dali cantando, trocando as letras
descruzando aquele caminho cruzado
mais bêbada e confusa do que quando entrou
seguiu noturna atravessando silenciosas esquinas
o vento fazia o quase tudo mover suas sombras
uma delas veio em sua direção
um esquimó de bochechas rosadas
da sua garganta saiu vapor e uma voz gutural
me queira bem que não te quero mal
sorriu good night sem se alterar
doida e dorida da falta do calor dos trópicos
seguiu em frente nesse Alasca onde ainda estava
refazendo profanamento os seus caminhos sagrados
tomou a sua ultima dose e pensou
deus inventou o diabo pra provar que existe
Vagner Luís Alberto: Nasceu em São Paulo e durante um ano e meio, em Salvador, fez a cabeça nas ruas dionísicas com cultura baiana-africana-brasileira. É artista plástico, poeta e contista. Ator de teatro, lugar onde pode incorporar textos e a vida dos outros através do seu corpo, também dirigiu e produziu, inclusive shows musicais. Em 2014, estreia na dramaturgia com BF, um concerto cômico teatral inédito, escrito em parceria com Marcelo de Trói. Encenou duas vezes Carlos Drummond de Andrade, adora Shakespeare, Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade e poetas/artistas como Jean Genet e teóricos como Camille Paglia. Considera-se influenciado por tudo, inclusive pelas coisas insignificantes e aparentemente banais.
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