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2 contos de Natalia Borges Polesso

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Ilustração: Christian Schloe



Memória

Eu não lembro mais de como era a voz dela, nem de como ela me chamava cedo pela manhã. Eu não lembro mais de como as mãos dela escorregavam pelas minhas costas e também não lembro onde iam parar. Eu já não lembro do cheiro dela. Eu não lembro como minhas mãos afundavam nos seus cabelos e nem da cara de assustada que ela fazia quando eu falava da gente. Eu não lembro das coisas velhas, nem das coisas que ainda seriam recentes. Eu não lembro se tinha pés feios ou pequenos. Eu não lembro se tinha a boca grande. Eu não lembro se falava manso. Eu não lembro se gostava de bergamotas e nem se assistia televisão antes de dormir. Eu não lembro se falava outra língua. Eu não lembro se gostava de cachorros ou se já tivera um gato. Eu não lembro mais de como era o cabelo dela quando molhado. Eu não lembro mais de como escrevia. Eu não lembro mais dos livros que ela queria ler, nem daqueles que já tinha lido. Eu não sei se caminhava normalmente ou se pendia levemente para o lado esquerdo. Eu não lembro mais se lavava a louça direito. Eu não sei se gostava de pop art. Eu não sei se ela viajou para a Europa, nem se foi ao Japão. Eu não lembro se gostava de trens. Eu não sei se tocava violão ou piano, ou nenhum dos dois. Eu não lembro mais se tinha a pele lisa. Eu não sei se brincava de bonecos ou andava de pernas de pau. Eu não sei se comia areia e também não lembro se algum dia ela reclamou da comida. Eu não lembro se gostava de branco ou preto ou laranja, nem se já tinha visto Laranja Mecânica. Eu não sei se tinha as mãos quentes e as unhas bem feitas. Eu não sei se patinava ou andava a cavalo. Eu não sei se tinha pai ou mãe ou irmão mais velho. Eu não lembro se tinha parentes. Eu não lembro se tomava limonada suíça às sextas-feiras ou se começava o fim de semana com mimosas de goiaba. Eu não lembro se teve um caso, uma casa, se comprou uma bicicleta ou se pediu a minha mão em casamento. Eu não lembro se reclamava por ter que separar o lixo ou se era ativista e militava contra o uso de garrafas pet, talvez fizesse compostagem no nosso apartamento, mas eu não lembro. Não lembro se decorou a casa com quadros ou se não ligava pro marrom descascado das persianas. Eu não lembro se tinha a voz fina e gostava de Carmen Miranda. Não lembro se passava batom, se comprava maquiagem de revistinha ou na farmácia.  Não lembro se detestava calendários ou gostava de entregar as coisas fora do prazo. Não lembro dos ombros, nem dos pelos, nem do formato dos seios, não lembro do hálito, nem se babava no travesseiro. Não lembro se usava chinelos. Não lembro que foi embora. Não lembro se esqueceu da chave. Não lembro se levou os livros. Não lembro se lavou a louça, se quebrou os pratos, se sujou a blusa, se algum dia deu com a cara numa porta. Não lembro o tamanho, nem a altura, nem o peso ou se quando me abraçava eu me sentia protegida.  Não lembro de nada, nem da textura dos lábios, se ficavam machucados no inverno ou queimados no verão. De tudo, sobrou só uma foto. Mas eu não lembro onde guardei.




Valsa


Às vezes tu é uma pessoa estranha, ela me disse enquanto todas as cabeças se voltavam para coisas alheias. A minha acompanhou o fogo que dançava no meu ventre esmorecer. Eu quis dizer que, às vezes, eu era mesmo uma pessoa estranha, mas mais a mim do que a ela. Quis dizer que não me reconhecia toda vez que minha intensidade corria apenas dentro do meu coração, provocando aquelas arritmias. Uma, duas, falha, uma duas, falha. Minha boca se abriu para dar conta da resposta, mas ela não veio. Ficou lá dentro – onde quer que as respostas se construam – ficou sem contorno e sem preenchimento. Apenas ar que se arrepiava entre minha pélvis e meu pescoço. No início era mais doce, perto do plexo, a coisa se alastrava pelo couro e endurecia, apertando minhas veias contra músculos e ossos, para no fim não sair de mim. E voltar em uma, duas, falha, uma duas falha cardioeletrofisiológica.


Natalia Borges Polesso é escritora, professora e doutoranda em Teoria da Literatura na PUCRS. É autora deRecortes para álbum de fotografia sem gente, obra vencedora do Prêmio Açorianos 2013 na categoria contos, e também da tirinha tosca A Escritora Incompreendida, publicada via facebook. Os poemas acima são do seu segundo livro Coração a corda, de 2015.

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