a moça que veio
ela estava contente
com o porta-retratos
que ganhara de aniversário.
tanto que o colocara
na sala de visitas,
sobre a mesinha de centro.
por que a senhora não põe
uma foto da senhora aí,
perguntei sem receio.
ela disse, ah, meu filho,
deixa assim, tá tão bonita
essa moça que veio.
aula prática de geometria
circunferência é a medida
do círculo em metros
redondos,
diâmetro é o raio
que o parta.
alice
dentro do espelho
tem uma menina
que se parece comigo
que me aparece sempre
.
no vidro
juntas esprememos
umas espinhas,
choramos.
às vezes me assustam
os seus segredos
às vezes rio,
rimos.
eu a chamo lili
e morro de curiosidade
de saber o nome
que ela me deu.
desprezo
a palavra é como abelha
tem o mel e o ferrão
o silêncio é a centelha
que incendeia a escuridão.
assim cantava o velho
repetiu a vida toda
palavra nos olhos
coração na boca
palavra na boca
tatuando a pele
palavra na pele
tapeando, tapando o ouvido
palavra no ouvido
picotando a carne
palavra na carne
a poça de sangue
a página aberta
na página certa
da verdade,
resposta de olvido.
silêncio navalha
palavra desossada
desossando, desossando
palavra dissecada
lâmina seca
retalhando em grandes postas
o corpo do meu irmão.
fogo-pagou
eu tinha um passarinho
desses que piam dormindo
morou comigo branco e vermelho
nove luas novas e meia
depois foi e morreu
mas ainda pia dele
fundo nos meus fundos
toda lua cheia.
a lhama
a lhama foi domesticada
pelos incas
no século quinze.
a lhama é tipo uma ovelha
camelo da cordilheira
dos andes.
a lhama é irritável que só ela
e costuma cuspir
em quem lhe aborrece.
jamais compreenderá
a lhama
quem nunca lhamou.

Marcílio Godoi é arquiteto e jornalista, mestre em Crítica Literária pela PUCSP, autor de São Paulo, Cidade Invisível; A Pequena Carta; A Inacreditável História do Diminuto Senhor Minúsculo, entre outros livros. Nunca publicou um livro de poesia.
Fotografia de Horácio Guzmam