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O OBJETO TRANSFORMADO EM OBRA

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“O suicídio de Dorothy Hale” de 1938/39 (Frida Kahlo)

Renata Wirthmann

É próprio da obra de arte se constituir dentro-fora do tempo. Como resultado dessa dualidade temporal, tem-se um produto: uma obra é constituida a partir de elementos pertencentes a um lugar e uma época, trancedendo-os.
       
Como exemplo desse produto de arte gosto de fazer referência ao artista plástico holandês Hieronymus Bosch (1450-1516). Em pleno século XVI Bosch já pintava o surrealismo do século XX. Mas Bosch não estava completamente fora de seu tempo, os elementos que compõe seus quadros são representativos da idade média (religião, céu, purgatório e inferno, torturas, etc.), representativos de seu tempo, entretanto a organização desses elementos faz da obra de Bosch uma obra que pertence, simultaneamente, ao século XVI e ao século XX.
       
Entretanto, mesmo as obras regularmente localizadas no seu tempo histórico nos surpreendem com o modo de lida com os objetos. Observamos, ao longo da história da arte, que esta se compõe a partir da produção de um objeto novo partindo de um objeto que nos é dado pela natureza. É o que observamos nas pinturas renascentistas, que não pintam uma mera cópia do que é observado, mas uma outra coisa. Podemos ver na Última Ceia que Leonardo Da Vinci toma como ponto central, de onde parte toda sua perspectiva, o Cristo. Essa não é a imagem que seria capturada por uma fotografia, mas uma outra imagem que transforma, combina e repensa os dados as experiência sensível.
       
Nesse jogo de reorganizar objetos cotidianos podemos dar um salto ao Surrealismo, ao séc. XX, com a artista plástica mexicana Frida Kahlo. A obra de Frida é composta por diversos objetos deslocados, cenários imprevistos, fusões entre a cultura mexicana, mitologias, fatos, sonhos, razão e fantasia. Há ainda uma forte ênfase na dor e no erotismo através dos fragmentos de corpos humanos, das aberturas em seu corpo e amputações.

Para falar do modo de organizar os objetos na obra de Frida precisamos antes falar de das Ding. De acordo com Lacan, o objeto contorna a Coisa produzindo arte. Lacan fala também da obra de arte como um modo de organização em torno de um vazio, em torno da Coisa, das Ding. Há sempre algo de intangível na obra de arte, algo de certa forma mítico, impossível, assim como na Coisa, das Ding.
       
O vaso, por exemplo, é um objeto que permite representar a Coisa/vazio, pois o vaso se constitui em torno dele, do vazio, em torno da coisa. “É justamente esse vazio que ele [o vaso] cria, introduzindo assim a própria perspectiva de preenchê-lo” (Lacan, 1959-1960/1988, p. 152). Afinal, não é possível representar o vazio em si. Somente é possível contorná-lo tal como o barro do vaso faz e tal como a obra de arte faz, a arte contorna um sentido, sem nunca se restringir completamente a esse único sentido.

Nas telas de Frida Kahlo podemos observar esse mais além produzido pela arte. Na obra de Kahlo, as molduras contornam e são, elas mesmas, telas. A moldura valoriza e tenta comportar a tela, entretanto, por mais que a moldura de um quadro tente contê-lo, contorná-lo, para que tenhamos a ilusão de que sabemos onde ele começa e termina, ela falha, pois o quadro tem sempre algo de inapreensível, algo de seu sentido desliza e ele jamais pode ser completamente dito, assim como das Ding, a Coisa.

Quando Kahlo joga com as molduras é como se ela sublinhasse essa característica da obra de arte, é como se ela dissesse que a obra de arte não pode ser concebida de forma limitada demonstrando essa não-limitação através do (des)limite do próprio quadro que se utiliza também da moldura.

No quadro “O suicídio de Dorothy Hale” de 1938/39 a moldura é apresentada como extensão da tela. Esta obra é um retrato feito em homenagem a atriz Dorothy Hale. O quadro foi encomendado por Clare Boothe Luce a fim de dá-lo à mãe da atriz que havia se suicidado em outubro de 1938. O quadro quase foi destruído por Clare Boothe Luce, que o achou de péssimo gosto. Ela não o destruiu, mas repintou a parte de cima do quadro, onde se via um anjo com uma bandeira escrita em espanhol: “O suicídio de Dorothy Hale, pintado a pedido de Clare Boothe Luce, para a mãe de Dorothy” (Kettenmann, 2004, p. 51).

Nesse quadro, a moldura continua parcialmente a tela; vemos as nuvens que, na tela, se limitam ao chão, na moldura, ultrapassarem esse limite. Na parte inferior da moldura, o sangue de Dorothy escorre como se ele não fosse mais parar, como se ele fosse escorrer para além da tela, para além da moldura, pela parede onde o quadro fosse um dia pendurado, pelo chão, infinitamente.

Neste quadro, a moldura começa a passar para dentro da tela e não só a tela para a moldura. As inscrições que Kahlo faz compõem, ao mesmo tempo, a tela e a moldura. A sombra do pé de Dorothy é projetada na faixa que não é a continuação do chão onde ela se encontra. As inscrições são feitas com seu sangue, que escorre no chão e continua na faixa e também na moldura. Na faixa, a seguinte inscrição: “Na cidade de Nova York no dia 21 de outubro de 1938, as seis da manhã, se suicidou a senhora Dorothy Hale atirando-se de uma janela muito alta do edifício Hampshire House. Em sua memória este quadro foi executado por Frida Kahlo” (quadro, tradução nossa).

Em muitos quadros de Kahlo, podemos ver inscrições que parecem descrever o quadro, que dizem o que está ali representado, mas essas inscrições, assim como as molduras, são colocadas na sua obra como uma forma de dizer: Isso que está escrito, isso que está na tela, é o óbvio, mas não se enganem achando que é tudo. É um jogo que Kahlo faz a partir da obra com a própria obra, dizendo que o quadro está para além do quadro, que aí reside um excesso de sentido, que faz com que um mesmo quadro possa ser visto e descrito milhares de vezes, e que isso nunca será suficiente.


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