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Theodoro de Bry. Adão e Eva. Admiranda Narratio. Gravura, 1590. |
Daí a muitos anos dirão que fora criada à imagem do senhor. Outros dirão que de uma costela de adão. Tudo dependerá de quem diz, o que diz, como diz. Mas ela sabia que nem uma nem outra. Ela fora criada e só. Sem imagem, sem artifício. Apenas assim, como se cria uma história que não tem fim ou começo, que vem dar voz ao inenarrável, que vem pôr em palavras o que não é, a ordem no caos, a arrumação no infinito. Assim ela também fora criada, uma história em meio à barbárie do informe, nem costela nem imagem.
E a vida era boa, e era ela e a serpente, e rodavam e andavam e serpenteavam pela mata como velhas amigas, e era bom. Era bom ver o junco junto ao rio, era bom comer do figo e das uvas, e sentir a água correndo e limpando o mundo. O mundo rasteiro como a erva que crescia e simples como o horizonte que se divisava da quase ilha em que moravam. O gado pastava solto e o leite quente que bebiam enchia a alma e era bom, e as frutas colhidas aos montes das árvores manchavam as mãos e o corpo e era bom.
Correr pelo campo aberto também era bom e o vento levava os corpos e empurrava as pernas, e elas corriam até mais não poder, e se deixavam cair já sem forças, arquejando e felizes, a canseira gostosa de quem se cansa por querer e rindo das coisas bobas que se diziam e esqueciam.
E por vezes as coisas bobas se faziam menos bobas, e ela e a serpente se punham a imaginar outros mundos e outras histórias, e como seria se. E foi assim que um dia a serpente não se aguentou e disse: há outros mundos possíveis. Há outras histórias. Ela não prestou muita atenção, mas uns dias depois quis saber melhor. E a serpente contou. Que prestara atenção no que outros falavam. Que entreouvira. Que era possível que elas não de tudo soubessem. Que havia um meio. Que as árvores guardavam segredos, e que uma delas em especial trazia em si os frutos do conhecimento, e que sabendo do bem e do mal a vida seria outra.
E elas ponderavam. Continuar a mesma vida? Saber de outras vidas, de outras verdades? Descobrir era bom? Ficar no desconhecimento era bom? Dias e noites de conversas jogadas fora, o supremo prazer de falar e falar, de estar junto e se saber querida, o supremo amor. O tempo que não passava era um tempo de amor sublime, mas havia sim algo a saber, algo a descobrir. E havia ainda deus, e a certeza de que algo tinha sido ocultado delas, algo escondido e solene, algo que não se falava e não se ouvia, e elas queriam e não queriam saber. O tranquilo lugar do desconhecimento estava rachado, e a certeza de que algo tinha sido por certo dissimulado as faziam sonhar com o além do rio e além das águas e além das terras.
E havia adão. Adão para quem deus era bom e correto, deus era apenas alguém a quem se agradecer e não duvidar. Não, não era possível falar com ele. O mundo era branco e preto para adão, e ela sabia que assim não seria jamais o mundo, não o mundo que ela e a serpente habitavam, não o mundo que elas sonhavam que habitavam e faziam que habitavam. Não, o mundo seria sempre outro para elas, e então diante dele ela se calava e era apenas quando se encontrava a sós com a serpente que ela ousava falar e ouvir.
E então a serpente trouxe uma novidade. Não era apenas uma árvore. Eram muitas. Uma árvore traria o conhecimento, diria do bem e do mal. Outra seria a árvore da vida, e elas viveriam eternamente, eternamente correndo nos campos, comendo dos frutos, nadando nos rios. Outra ainda as levaria a outros mundos, para além desse mundo, para um mundo que elas nem sequer compreenderiam. Outra as fariam ser também a fonte da criação, e as formas criadas seriam infinitas, infinitas como a imaginação do ser criador. E ainda outras.
No início tudo parecia muito irreal. Como assim, um outro mundo? Como assim, criar outros mundos? E qual o sentido do bem e do mal, elas que viam que o mundo era bom? E elas já viviam eternamente, ali, entre o rio que serpenteava e circunavegava.
E muitas falas e muitas conversas até o dia em que resolveram que deveriam provar de uma das árvores. Só provar, para sentir o gosto e o aroma, o jeito e a fala, mas elas não sabiam de qual das árvores deviam de provar. Criar um novo mundo era tentador, conhecer um novo mundo também. Mas viver eternamente parecia demais, algum dia se cansaria e ainda teria de viver para sempre, e não lhe parecia justo jamais poder descansar, estar viva para o todo o sempre era por demais. Havia também a árvore do bem e do mal, mas essa lhe parecia inútil, a ela lhe bastava o conhecimento dos frutos e das árvores, da água e do leite e do mel.
A serpente tampouco sabia. Parecia-lhe bem o mundo tal qual era, o vento nas costas largas e o deixar-se estar. Tinha curiosidade de provar de todos os frutos, isso sim, os gostos lhe sabiam bem, conhecer de cada um deles e penetrar seus mistérios, o sabor se espalhando em sua boca e em seus instintos, sim, de todos eles ela provaria um dia. Mas um dia. Por enquanto, bastavam-lhe os sabores existentes.
Foi adão que começou com a conversa. E se provássemos de todos eles? E se soubéssemos o que é o bem e o mal, e com isso criássemos um novo mundo, e viajássemos entre nosso mundo e os outros, e...? Elas se riam dele, a ingenuidade de quem nunca pensara nisso antes, a animação contente de menino mimado, elas que sabiam que sua coragem acabava no temor a deus, no medo de dar um passo maior que as pernas, de percorrer o desconhecido e o inefável.
E eram conversas intermináveis, plenas de e se, e se, e que terminavam em um mergulho no rio e no lavar da alma, as palavras esquecidas e levadas pelas águas.
Até o dia em que. Adão se chegara de mansinho, e disse que ficara pensando que criar um novo mundo seria a suprema aventura, e a serpente dissera que ele nada sabia, e então ele disse que então que comessem todos da árvore do bem e do mal, que assim eles de tudo saberiam, e sem nem perceber a serpente foi concordando e pegando do fruto da árvore, e provando e passando para ela, que comeu com gosto e passou para adão, que ainda olhou perplexo para ambas e também comeu. E eles se entreolharam e viram que estavam nus, mas para a cobra isso nada quis dizer, ela que sabia que o mal não morava fora do corpo. Mas ela e adão correram a se trançar as folhas e vestir roupas, e ficou claro que o bem e o mal guardavam muitos significados, e para cada um queria dizer algo distinto, e cada um de seu lado foi mastigando o conhecimento, sentindo seu gosto azedinho e percebendo as nuances que se espraiavam pela boca e pelas narinas, e iam percorrendo seus corpos já vestidos e separados.
Foi então que deus se apercebeu do que acontecia. E se eles detêm o conhecimento, não vão tardar a provar do fruto da eternidade. E daí é só um passo para provar do próximo fruto e criar seus mundos. E a criatura se tornará o criador, não, os criadores, e eu serei apenas mais um criador, mais um ser em um mundo. E doeu. Ser apenas mais um era o terror do pequeno deus, ele que se queria único e absoluto. E então a solução veio rápida e pronta. Expulsá-los do paraíso. Antes que comessem de outro fruto. Antes que comessem de outra árvore. Antes que.
E perguntou deus ao homem por que comera da árvore do bem e do mal, e o homem disse que a mulher o tentara, e que à mulher tentara a serpente. E a deus não havia tempo de desfazer traições e diz-que-diz, pois que o tempo urgia. E expulsou a todos do paraíso, e tratou de espalhar a dor enquanto ainda havia tempo.
E a ela separou da serpente, elas tão amigas se deixariam levar por medos ancestrais e se odiariam e se matariam por todo o sempre, esquecidas de seus tempos comuns, de seus amores e carinhos.
E ela esqueceria de sua força, concentrada que estaria de sofrer a dor maior, e gerar os filhos e multiplicar as gerações e a terra seria maldita e traria a dor, os espinhos e cardos a cortar a pele e o suor a ceifar a vida e os anos de adão.
E o rancor duraria séculos e séculos, e assim seria até o final dos tempos. Não fosse um encontro casual. Ia ela passeando pelos campos, vestida e asseada, plena do conhecimento, e esquecida já do que se passara, e que houvera um tempo em que estiveram todos nus e no paraíso, quando ao passar por uma flor de cardo algo a fez parar. Era um dia quente, e o suor corria por seu rosto, e o campo se fazia de ouro do trigo que eles cultivavam, e um raio de sol cortou o roxo da flor do cardo. Assim, simplesmente. E a flor cortou sua pele, e o sangue brotou e tingiu o chão e um quase círculo se fez ao seu redor. E então ela viu. Lá estava a serpente. Um primeiro impulso a fez buscar um toco de madeira, um ramo qualquer, mas seus olhos cruzaram os olhos da serpente e as duas ficaram ali, imobilizadas. O tempo parou, só o vento assoviando e levando as folhas. E as duas mantiveram o olhar, e a compreensão se fez imediata, e as duas então já sabiam o que fazer, e correram lépidas até o fim dos tempos, e correram e tropeçaram e correram e serpentearam até o fim do mundo, e ultrapassaram o rio e as águas, e juntas colheram o fruto e lambuzaram-se no sumo vermelho e quente e riam-se de novo juntas, de novo ela e a serpente, e agora os mundos se misturavam e se entrecruzavam, e elas ali, só rindo e gozando o prazer de criar e recriar, de trazer de volta e deixar, de inventar e desinventar, e os mundos só se sucedendo e se entretecendo, elas, as criadoras, rindo do deusinho pequenino e insosso, elas que sabiam do sabor dos mundos.
Adriana Griner nasceu em 1962, no Rio de Janeiro (RJ), onde mora atualmente - depois de temporadas em Brasília (DF), Campinas (SP) e Israel. Formada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), já foi bancária e hoje atua como do Instituto Tecnológico ORT, escola sem fins lucrativos de origem judaica. No Início é seu livro de estréia na literatura