Corpo, linguagem
Teu corpo é um poema
mais que Euterpe, Calíope,
Clio é só linguagem
esse corpo miragem
tão perto tão longe,
paisagem oásis esfinge
Leio com a língua as linhas e dobras
(são tantos enigmas o teu corpo)
enquanto das pétalas vermelhas
aromas baunilhas exalam e
minha língua como se olhos fosse
procura a luz no fim do túnel
A lança - punhal cego - deseja transpassar
entranhar-se curva adentro-fora:
conhecer cada relevo pêlo poro
as metáforas do teu corpo.
Visões de lautréamont
Não fosse o fogo por aqui ardendo
e este cenário, deverias, filho,
mais ligeiro do que eles ir correndo
(Dante, Inferno. Canto XVI)
entre cálices de absinto e ópio
lautréamont
desce ao sétimo círculo
virgílio, no limbo,
se recusa a acompanhá-lo
as harpias incendiando o céu com labaredas
apontam-lhe o percurso
seus cantos –
elixir de enxofre
mandrágora e mescalina –
entorpecem os jardins das delícias
seus pecados:
alquimia do verbo
corrosão da sintaxe
subversão de versos
fratura e sutura de textos
trêmulo e atônito,
entre troncos e correntes,
no bosque dos suicidas,
nenhuma beatriz vem salvá-lo
Respondendo a uma pergunta
Não, não pertenço e
nunca me ouvirá bater à sua porta
migalhas de pão sobre a mesa
não interessam a ninguém
e decididamente é menos
orgulho que vingança
nestes troncos truncados
rios não se deitam
em afluentes disléxicos.
É da aridez do interior
que gesta a poética da falta e, de fato,
Platão erra, pois o amor não é
aquilo que é.
São sucessivos acidentes
(acertam os sofistas)
edificados tijolo a tijolo
desde sua fundação
mas chaves e cadeados
impedem a transfusão e sabe-se
em oculto que o cálice do sangue dos avós
nunca é ofertado aos herdeiros
quem se fortalece quando
se nega o pertencimento?
Sem-abrigo
“eu caminho sem calcular onde possa dar,
o meu destino é andar,
cumpro o meu como vocês os seus”
(A Fúria do Corpo, João Gilberto Noll)
I
O vento corta a madrugada
como navalha ao olho
(um chien andalou).
A cachaça acorda
a serpente em bote
nas trevas do ventre
farto dos artifícios da urbe
(se reluz à noite é
pedra ou ponta de faca)
tropeça a fruta podre
nem sente o peso
do corpo piloto
automático que tomba
Qual vazio seu olhar
desfocado
afaimado
absorto
sôfrego
procura
no adro do hades?
Sem-abrigo
II
A cada tragada
da pedra
sente-se
eterno
entretanto
nem existe mais
aquele corpo
carcomido
chagado
chapado
disforme
funciona
(mal) para
alimentar
a fera voraz
que o devora
por quinze minutos
acende-se o clarão
ascende às
culminâncias
da iluminação.
e volta a tombar
no inferno o
acorrentado
prometeu
* * *
Paulo Andrade nasceu em Boa Nova (BA), município incrustado entre a caatinga e a mata atlântica. Estudou Letras na Universidade Federal de Viçosa (MG). Iniciou sua carreira profissional como repórter e redator. Fez Mestrado e Doutorado em Estudos Literários na UNESP/Araraquara, onde atualmente é professor de Teoria da Literatura. É autor de Torquato Neto: uma poética de estilhaços, (Annablume/ Fapesp) e de vários ensaios em livros e revistas. Os poemas da presente seleta integram seu mais recente livro (de poemas) "CORPO arquivo" (Patuá, 2014).