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"e tudo o que se guarda embalado num sussurro" - Charles Marlon

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street art por Herakut




/ por Charles Marlon /




17, rue Beautreillis

A estreiteza da rua dividida
com os carros parados em
fila dupla. O luto baixou

as portas do teatro –
hoje a vida não é chamada
à dança, em cena. Como

que do alto da janela ouviria
o som das águas a entrar
pelas frestas da luz que

no receio de escuro
desvaneceu tua face
com a força que tinha

a coluna que já não
te sustem. Do susto pre-
ssentido, o que temos

são as asas paradas
(e o medo elidido)
da nossa pequena imag-
inação.



“Depois do Começo”

O motorista pede-nos: É favor deixar
os vidros abertos, faz frio nas ruas,
que são largas e não são de ninguém.

Teus olhos, desenhados a lápis, seguem
cerrados dentro do espelho do pequeno
retrovisor. Não achamos na noite o motivo

pelo qual, pretensamente, buscávamos, ou outro
engano que nos justificasse ainda a busca
noturna de qualquer memória. Ninguém veio juntar-se

a nossa solidão. O carro contorna a última esquina
- como que a andar por certos trilhos- e pesa-nos
um pensamento premeditado e acabamos por

descer em frente aos portões do velho colégio,
onde no natal um coral está sempre a cantar
solos – vasos de vozes barr-

ocas. Sejamos ambos bem-vindos. E a meio da escada,
descobrimos, como que por acaso - a equilibrar o que
temos de menos consistente- o nosso próprio – e único-
logradouro.



“Mantém-se a chá e pão!”*

A vida – ou o que depois
aprendemos a chamar acaso –
a acumular-se por sobre o pó

de entre os livros (dis)postos em
fila dupla.Não sei ao certo se rece-
beste minha última mensagem,

há dias a rua anda inquieta e movimen-
tada, como um cão a coçar-se de pulgas;
 há um volume encoberto por folhas

de jornal logo ali, na esquina. As
portas estão fechadas na rua do
comércio, como pálpebras que

cedem ao cansaço do sono de todo
domingo. E as horas marcham
esbarrando nas fachadas. Pois sim,

avisava-te, caso queiras, que te chegas-
te uma carta, avisava-te, também, que
ligaram-te três vezes. Dos livros apren-

demos apenas uns desesperos mudos
e tudo o que se guarda – embalado-
num
sussurro.



“No fim da estação regressam iguais com histórias diferentes”**

Lembra-te ainda, em lugares escusos,
ter ouvido dos amigos, a meio caminho,
“É tanta inteligência a disperdiçar-se”
e pensavas, então, sobre o quanto
sempre menosprezaram tua incapacidade?

Tuas mãos nunca te
serviram
para outra coisa que não aos versos
dos versos que teimaste em errar,
mais que em escrever.

Estacionas, agora, toda a tua
impaciência à porta e aprendeste
que o amor, quando senta-se
a mesa, é visita que joga-nos
sal aos olhos.

Há qualquer número
que falta, e a conta
da vida nunca bate ao final dos dias.
E há sempre uma razão de menos
em tudo o que não compreendes.

Ao fim da tarde, nos domingos, são
sempre os mesmos dez a se repetir
quando –só- contas nos dedos
tudo o que tens, e que
por sorte, não te pertence.



“Nobody Home”

Sossega-te sobre
a cera vermelha do piso
gasto. Escuta as passadas

de um tempo ausente;
da chinela arrastada
saíram estes arranhões.

Quando levantares,
sobre a mesa, te esperam
as contas do mês e a conta dos
dias.

Quando julho penetra,
impregnando a cortina,
é pela falta de outra certeza
que nossas vidas seguem
costuradas com os re-
talhos de tudo o que

não deu certo.



“Os navios todos se parecem e o mar é sempre o mesmo”.***

1968. Esquadros de
memórias emprestadas;
fotografias em preto e
pouco branco. A lágrima

que me cai, me sai sem minha
ser - sequer. Há cor demais nas
rugas de Caetano e as palmas
no auditório pedem – ainda-

uma última canção. Em
que gaveta ainda bate –
se tanto – ou por qual
janela saiu (pra se perder)

nosso baço coração?



* Extraído de “Contrariedades”- Cesário Verde
** Versos de “Ainda não é tarde” de Rui Pires Cabral (Oráculos de Cabeceira- Averno 2009)
*** Pg. 12 de O coração das trevas. Tradução: Celso M. Paciornik.



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Charles Marlon, autor do livro Poesia Ltda., lançado em 2012 pela Editora Patuá, é poeta e bacharel em Letras pela USP. Atualmente, participa de um projeto mestrado sobre poesia contemporânea portuguesa e a poética da solidão em Rui Pires Cabral. Nutre grande interesse pela literatura, em especial pela contemporânea e por suas relações com as teorias do pós-modernismo, mais ainda por aquilo que possibilita teoria e literatura: a vida contemporânea e suas (im)possibilidades.


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