DETERGENTE [FRAGMENTO]
Imagem de Niki Feijen
Nascem no mesmo dia a força
E a pobreza. A casa está cheia
De entulho e as ruas não permitem
A circulação. Vivemos entre escombros,
Já muitos o disseram. Por isso paro.
Vivo? Sobrevivo? Existimos. Pro-
Curo-me no lixo e não me encontro.
Perco-me e assim quebro, parto, a
Madeira da vivenda que deixou de ser
Habitação. Queimo e guardo a cinza
Para espalhar na terra antes de regar,
Ainda que seja de ossos e de carne.
Tenho assim espaço para tornar
Mais leve esta imagem. Só assim
Conseguirei transportá-la, enquanto
Toco a essa porta, chamando aqueles
Que me constroem, puxando quanto
Valho com a roldana, até chegar
À platibanda do edifício. Recolho,
Gravo, a voz do mundo. Apenas
Um carvalho — e nós que nunca
Desatarei — poderá oferecer-me
O vazio de que preciso para conservar
As paredes da derrota, protegendo
Desse modo lugares nunca habitados.
Devolvo ao abismo as escamas que
Um dia pisei, quando encontrei
Na caverna algo bem diferente
De uma sombra, sem revestimento,
Sem rito, tendo ao centro a escassez
Que esboroa as ondas e atira os navios
Contra o risco, transportando-os depois,
Sem podridão, até ao fundo do leito
Onde os ossos seguram esse cais
Sem sono, aos rebentos dessa árvore —
Adormecendo, seca, exceto no ramo
Que a forca reverdeceu, à espera
De semear verbos sem trânsito,
Nomes sem raiz, círculos sem espiral,
Sem hélice, impedidos de voar e de
Trazer à nascente essa mão que
Colhe num rio o esquecimento
E a força das origens. Há frutos caindo
E apodrecendo, apesar da fome,
Mesas e cadeiras flutuando, pontes
Sem movimento e ameaçando
Derrocada, excrementos cobrindo-os
Como estátuas sem nome, tintas
Ocultando a morte para dissolver
A vida, telhas acamadas na margem
Da ribeira, à espera que a foz nos leve
Ao aterro — mas a campa continua
A ouvir-se nas mãos duma mulher,
A palavra continua a escutar-se en-
Quanto a força regressa à enxada
E a voz confere, deixa cicatrizes,
Apesar da surdez sem alimento.
Guardo a imagem entre as páginas.
Bem poderia ler a legenda e decifrar
As escadas. Tenho contudo uma língua
Pobre, vocabulário com limites — e não
Sei traduzir os versos que a passagem
Vai abrindo antes dos corvos comerem
Quanto resta. Poderia multiplicar as
Fotografias e, assim, acalmar a escassez
Da nascente. Caminho e vou encontrando
No enxurro os dedos que perdi e, perto
Deles, ânforas e transístores, circuitos
Desintegrados que nenhuma sinapse
Poderá devolver à voz ou à melodia.
Ruy Venturaé um poeta português nascido em 1973, em Portalegre. Vive e trabalha perto de Lisboa. Publicou os livros Arquitectura do Silêncio(2000), Sete capítulos do mundo(2003), Assim se deixa uma casa (2003), Chave de ignição (2009), Instrumentos de sopro (2010) e Contramina (2012). Neste ano de 2014, foi lançada no Brasil uma antologia da sua obra: Rua da Outra Rua (Lumme Editor, São Paulo). Seus poemas estão traduzidos em alemão, francês, inglês e espanhol.