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A POESIA DE ÁLVARO MENDES - UMA HOMENAGEM | parte hum

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A EXTRAORDINÁRIA POESIA
DE ÁLVARO MENDES   (1938-2012)



Com o ensaio que se segue, de Mauro Gama* (que será mostrado em duas partes), bem como a seleção de poemas, iniciamos aqui uma homenagem a Álvaro Mendes (falecido em abril de 2012), poeta de Íris breve (de 1996, único livro do autor, lançado próximo aos seus 60 anos). Álvaro deixa dois trabalhos inéditos, Sardônica (poesia), e Alvarozes, uma desconcertante e inovadora prosa experimental, de que pretendemos mostrar trecho mais adiante.

Em sua obra toda essencial, Álvaro não fez concessões a qualquer "receita de poesia" e a qualquer sentimentalidade, muito embora tenha sido homem de paixões avassaladoras.

Esperamos, em respeito ao tempo em que esteve entre nós, prestar-lhe o devido tributo, divulgando a obra do poeta, sobre cujo trabalho escreveu Ivan Junqueira, também seu amigo: "Os principais poemas (...) nos transmitem uma funda e obscura estranheza da própria linguagem, uma sensação de agudo niilismo do poeta diante do mundo e da vida".

"Vejo-o passar ainda mais branco
no silêncio branco  vejo-o calar
em tudo um grito mudo  um seu
amor longe  e adverso a  
todos os arcanos  e anjos." 

Mauro Gama, "Elegia a Álvaro Mendes"


*   *   *


O novo e o universal na poética de Álvaro Mendes
                                            
[parte hum]


                                                                                                                                  por Mauro Gama*



Do gênio de João Cabral de Melo Neto, e da contribuição toda original de Manoel de Barros, até a geração mais recente, ainda em cueiros, passando por três ou quatro medalhões mais ou menos mumificados, de obra incerta e presunção insana, sem contar o enxame de poetas e poetisas esvoaçantes em festivais patéticos e oficinas "literárias" (que difundem uma receita geral de impressionismo contígua à epidemia periférica das reproduções de Renoir), a poética de Álvaro Mendes se distingue pela autenticidade dos temas e tanto pela linguagem própria, particular, de meios e fins independentes (que a inserem na mais importante vertente pós-moderna das letras brasileiras), como pela unidade, pela lúcida coerência de sua proposta estética. Como Álvaro, em vida, só publicou Íris Breve (1996), o livro foi risonhamente saudado como sua "estreia", comovedora categoria taxonômica dos resenhistas dessa Pindorama. Lembramo-nos, na época, de que também teriam sido livros estreantes o Eu e outras poesias, o Clépsidra de Camilo Pessanha, O Livro de Cesário Verde, o Mensagem de Fernando Pessoa e assim por diante. Que tolice. O próprio Pessoa por pouco não desapareceu, como homem, sem publicar coisa alguma. Emily Dickinson jamais publicou um livro. A natureza da poesia, no Brasil, parece algo inteiramente ignorado. É por certo o que nos permitiu catalogar cerca de trinta tendências na atual literatura poética brasileira. E por certo, ainda, a razão pela qual, atônitas, as pessoas hoje fazem "curso" de poesia, pagam um picareta para lhes ministrar a arte de Sá de Miranda, e de Rimbaud.

Álvaro Mendes (1938 - 2012)

Álvaro Mendes, a rigor, é um poeta português. Viveu em Coimbra os anos mais decisivos da sua coleta de motivos, daí os reflexos dessa geografia e dessa cultura no vocabulário de seus poemas. Algumas pessoas, ultimamente, julgam-no "erudito", não sabemos em função de que indícios ou de que traços de seu trabalho. Já se usou a mesma palavra a nosso respeito e só podemos atribuí-la à waste land do Brasil dos nossos dias, em que parece vencer em todas as frentes a ambiciosa e maciça ignorância. Erudição é uma noção equívoca, de atmosfera acadêmica, formal, se não togada, e Álvaro é um rebelde, um contestador por excelência. Mas que ninguém se iluda: todo escritor verdadeiro sempre teve e precisará ter sempre amplos conhecimentos. Camões foi, além de tudo, um sábio da Renascença. Entre os modernos, então, essa característica se torna ainda mais complexa. Vejam quantas línguas e que oceanos de informação tinha James Joyce, ou o nosso Guimarães Rosa. Ou, voltando estritamente à poesia, Bandeira, T. S. Eliot, Pound. A estesia poética não se aprende, e sobretudo não se expande, em cursinhos de gargarejo. Requer um minucioso cabedal de observação e pesquisa (a não ser para quem, de berço e circunstância social, se dedique naturalmente ao cordel). Mas isso é de outro campo, e registro.


Íris breve é uma coletânea primorosa. O espectro de sua criação vai das mais fundas raízes da cultura portuguesa até a  mais arrojada invenção poética aberta para o futuro. Seu conjunto é impecavelmente bem-resolvido, construindo-se em duas perspectivas complementares, a da "íris breve" propriamente dita e a iniciada em "prosa espessa" (no sentido de Berceo,  lembrado por Cabral no pórtico de "O rio"). Nas duas direções sobressai o fervoroso compromisso com a poesia essencial e contemporânea, feita de materiais e ritmos verbalizados, não de "versos" ou de representações ainda indulgentes com qualquer retórica. Mesmo em su’“a estética da guerra”, prevalece a intenção de um tenso lirismo "impessoal", isto é, recriado sem nenhuma explicitude autobiográfica ou de confissão. O fundo de cena cultural e emotivo é, como dissemos, português, evidenciado no léxico botânico (oliveiras, tílias, castanheiros), zoológico (corvos, pegas, enguias, lugres – em vez de pintassilgo – e mineralógico: neste último caso, a  rica pedraria acentua a plasticidade do texto e lhe imprime toques de um neogótico fiel às suas impregnações coimbrãs: Álvaro Mendes viveu ali a maior parte de sua infância e  adolescência. Mas a “ditosa pátria minha amada” camoniana se acha ainda nos mitos recuperados (Dinamene, Don Sebastião), nas citações (Pessanha, Crespo, Nobre), assim como, aqui e ali, no torneio preferido e mesmo na ortografia (como em ‘combóio’).


No sentido mais técnico, o poeta se mostra de estirpe italiana, mas também sino-portuguesa, na tradição que nos vem de Pessanha: suas captações instantâneas chegam a apontar mais para Ungaretti que Montale (de sua especial preferência), abrindo-se à plena civilização europeia nos “Retratos”, em que as homenagens a Espinosa e Valéry enriquecem a galeria de marcos da orientação tomada, pois associam as opções do autor a uma visão de mundo panteísta e de racionalismo persistente. São admiráveis, em todo o livro, os resultados conseguidos no campo da sintaxe gráfico-visual: o enlace harmônico da escrita com o silêncio lembra a música de Anton Webern e a universalidade ressaltada por Valéry sobre  “Un Coup de Dés”, ao chamá-lo de “spetacle idéal de la Création du Langage”...


Mas não são inferiores, em eficácia e oportunidade, as invenções lexiológicas ou semânticas do poeta. Nas bruscas mudanças de classe gramatical, o ganho em imagens – uma das maiores riquezas do livro, e de toda poesia verdadeira – é sempre indiscutível. E o fundamental é precisamente fazer o que ali se faz: escrever com imagens, e reescrever, quando preciso, de maneira nova, como o Cabral retifificado na “deseducação pela pedra”. Todos os textos são ininterruptamente metonímicos, metafóricos e de rigoroso tratamento rítmico, às vezes explorando sabiamente nuances de tônica no mesmo número de sílabas, como n'"o poema das argolas", obra-prima de erotismo frenético e incessante criatividade. A música dos textos, sem concessão a medidas tradicionais, trilha novas possibilidades, como  na seção do "diabolvs in mvsica", de "na muralha do vento", na "pulsação (metros bárbaros)", ou na metapoética inteiramente particular de "poemas".


Na verdade, tanto aí como em outros momentos, como por exemplo em "viagem de combóio", a maneira como são trabalhadas as repetições anafóricas e como são modificadas, linha a linha, tanto as combinações como os ritmos decorrentes, gera uma espécie de desequilíbrio intencional da escrita que poderíamos comparar à instabilidade tonal, de contornos ainda mais fascinantes no assinalado "poema das argolas". Tudo isso é inovador e, por isso, de significado permanente. O que não subsiste é o avesso disso: a imitação, a falsificação, o pasticho, ou o epigonismo. Além de tudo, Íris breve não é apenas novo em todas as suas páginas; é também de completa unidade temática. Joga com uma oscilação estupenda, do começo ao fim, entre o stàbile e o mobile, a paz e a guerra. De forma obsessiva, reiteram-se fixações vocabulares inelutáveis, de cotidiana materialidade – num universo, contudo, de exuberante fantasia.


Com uma sintaxe também de numerosos pontos de contato com as artes visuais, sua escrita freqüentemente lembra o bico-de-pena ou certos tipos de iluminura que incorporavam as pedras preciosas como que incrustadas num meio de forte colorido, folhas, flores, muitas plantas e animais: nesse sentido, Íris breve desloca-se num quadrante histórico e cultural de milênios (na mesma “a estética da guerra”, por exemplo, se denuncia um processo humano e tecnológico que vai do sílex ao “tanque de ouro e aço”).


[continua na parte dois]



*   *   *

Antologia de Álvaro Mendes

[parte hum]

(seleção de poemas de íris breve)
                     

por Mauro Gama*








de "dinamene perdida":



dinamene perdida, cinza errante
perdida dinamene, diamante.
a friagem da lápide, número
afogado no cálice da pedra.
cerrada gargantilha de alto rito
domada pelo ritmo, corpo aflito


à beira d'água
resisto,     à quase trêmula
rupestre nas folhagens a neblina
brevidade invisível
-- sem lápide
na roupagem do muro
entre pavão e relva
as folhagens do dia.
o tumulto a surdina
clariluz de aurora
o naufragado o solitário agora
tumulto     serrania.


o vidro coa vapor
na fibra da oliveira
cárcere azulado,
retângulo de água



naufrágio


farol na estridência.
ósseo promontório a contrapelo
marulho recomeça o patrulhar



de "paisagens":


o arco solferino da lagoa
morde teu corpo.
o barco amadurece contra a popa
do sol. a noite cai de bôrco
sobre o rigor/abril da tua boca
                              de sombras.
nardovulpes (raposas) amargosas
deslizam ruivas penas eriçadas
no lago de ervas bravas.
enguias na loca. um sol de cal no lago.
a sombra das montanhas contra a boca
deslizas solferida, ruiverótica.





bóiam bambus         vento
brilham bambus       canas
verde-escuro preto, amarelo cor de gris
                                     malva
pérolas molham o pássaro
                         preto
bóiam bambus
                         e o vento



de "sinais":


viagem de combóio


1. serrania de pedras verdes
serrania de pedras tristes
serrania de águas verdes
serrania de águas tristes
caramulo de águas verdes
caramulo de águas tristes
-- a mesma paisagem ecoa.


sol vazio. céu vazio.
treme paisagem treme
azul entre montanhas
treme paisagem treme
nem uma folha ecoa
nem uma folha voa
nem uma folha treme.


serrania de águas verdes
serrania de águas tristes
caramulo de pedras verdes
caramulo de pedras tristes
a mesma paisagem voa
a mesma paisagem ecoa
a mesma paisagem agora.


pedra sombra      o vento
a roupa (limpíssima) ondulando
a garça límpida boiando
nem uma sombra esvoa
nem uma sombra ecoa. pedra.
sol tisnando a pedra.


serrania de águas verdes
serrania de águas tristes
serrania de pedras verdes
serrania de pedras tristes
caramulo de pedras tristes
serrania de águas tristes
caramulo de pedras verdes
caramulo de pedras tristes
-- nem uma sombra ecoa
a mesma paisagem ecoa
a mesma paisagem agora.


sombra de sombras perdidas
deseducação pela pedra
o detrito a lira
o anel de ouro grosso
crescente lunar.


2. o desfiar das nuvens sem motivo
"o rio douro é mais belo que o rio reno"
-- o desfibrar das nuvens
clareando oliveiras
de saia clareando
crescente lunar.



de "a estética da guerra":



bronze o marfim rasga o mapa queima a flora
quebra o sino rompe o dique
manobra de helicóptero.
helicópteros novos de aço grande leveza e crueldade
                                            [ teste-os bem.
seja fina a hélice lâmina límpida limpidíssima ceifando calor
                                               [ corola calor
diamante ao meio-dia
e o brilho derrube de pânico meus inimigos.
o sol pavão e o brilho


                    e o brilho e o brilho e o brilho

e o brilho derrube de pânico meus inimigos.




de "DIABOLVS IN MVSICA":



moscardos


tuas lembranças são moscardos
que me fulminam.
marulharam goivos nublados.
é o dia da cerração.
voa o papel em fachos de cobre.
folhas estalam na raiz
canas descarnadas quebram
o vermelho da ponta hercúlea.
tremem troncos sagrados
carrilhões no musgo
sóis de sabre
-- roxos céus de azinhavre.
tuas lembranças são moscardos.




de "o poema das argolas":



a revolta


quantas campainhas,
quantas! carapinhas
quantas? gretas? lontras?
quantos fundos-cimos,
quantas fendas-claras,
quantas crespas-crinas?
quantas pretas-louras
-- quantas ventas-touras!


quantas sendas-fímbrias,
quantas sungas-fibras!
quantas sangas lisas!
-- tantos oficias
quantas oficinas?
quantos arcos solfas,
quantas brocas catas?
-- quantas brocas cantam!


quantas lambes-popas?
de aves, quantas naves?
quantas neves toucas?
-- sois todas mudaves?


quantos ovos chocas?
esguios na toca,
enguias na loca,
exéquias na sala
peixas crus na boca
no ímã da garganta!


peras na garganta,
saraus na varanda,
perus na cozinha?
goles de garganta os
goivos da despensa?
prantos de sol-gema
gemes, na garganta?
penas na garganta?
pernas -- nebulosas --
presas na garganta?
e não cicatrizas?
pensa o cão da boca
armado em gatilho?
prensa o chão da boca?


quantas trutas brincas?
quantos fusos-fios,
quantos tufos frios!
quantos tufões sécas!
quanto brincas, trincas?
-- quantos beiços lampos!
límpida reluzes
em potras de sangue
-- lençóis e arcabuzes!



[continua na parte dois]


*   *   *


Mauro Gama

* O poeta e crítico literário Mauro Gama nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. Estudou letras clássicas e ciências sociais, em que se licenciou pela UERJ. Estreou em livro com os poemas de Corpo verbal (1964). Ganhou a vida como redator de editoras e obras de referência, entre as quais cinco enciclopédias, como a Barsa 1, a Mirador internacional (onde foi assessor editorial de Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss) e Barsa 3. Trabalhou na primeira fase do Dicionário Houaiss e colaborou na imprensa carioca, sobretudo em revistas da Bloch, no Jornal do Brasil e O Globo. Auto-exilado de sua grande e violenta cidade, vive hoje  em sua Quinta da Janaína, em Mendes/RJ. Outros livros publicados: Anticorpo (1969), poemas, Expresso na noite (1982), poemas, Zoozona seguido de Marcas na Noite (2008), poemas; José Maurício, o padre-compositor (1983), ensaio; Michelangelo – cinqüenta poemas (2007: tradução para o português coetâneo e estudo crítico; Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional).











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