TUDO É POSSÍVEL
No mundo das possibilidades
todos são mais livres: há sempre
um outro fundo e outros céus;
há oportunidades incontáveis aves
levantam vôo por entre cágados e
ratos: ritos
de amor em trocas apenas pressentidas
– de casais destinos hinos.
No mundo das possibilidades
também pode o amor
se tornar dor
e a dor amor.
Tudo se pode destruir
e construir reconstruir:
os mais sólidos laços se esfacelam
colunas de granito viram pó
queixumes viram grito
multidões se esfarelam
e somem num homem só – ainda que
súbito o homem só vire explosão
e tempestade e multidão.
No mundo das possibilidades
todos os juramentos
(e todos os mandamentos)
podem ser cancelados
todos os bêbados curados – e
todos os sóbrios embebedados.
E pode toda virtude virar vício
ou todo vício virar virtude
e o ódio a metralhadora
virar concerto de alaúde.
Mas também (e sempre) o oposto:
toda a alegria virar desgosto
e um rosto em agonia
se inundar de sol e de alegria.
O mundo das possibilidades
é via sempre aberta
e sempre aberta ferida. Mas
difícil é combatê-lo fazer-lhe mal:
o mundo das possibilidades
é a vida
enquanto tal.
PURA TERNURA
Pura ternura
Margarida:
coisa de rosa e mucosa
de pêssego e de ferida
de violetas e gretas
de humor
e quase dor deleitosa: coisa de vida
e guarida Margarida.
Você me guarda lá dentro
e palpitamos ambos
meio jambos
meio bambos
você com um pássaro na mão:
venha depressa me dê essa mão
a seu pássaro – a um passo do
coração ou do vulcão.
(maio, 2004)
CASAS À NOITE
Casas à noite com a noite
das turvas Evas das trevas.
Com os uivos com as ovas
dos ruivos trevos nas covas
seus insetos seus dejetos
seus trêmulos arquitetos
de decompostas artérias.
Estão mais mansas as moças
nesse arremedo de férias
já não têm troças nem tranças
se estagnaram são poças
onde revives molusco
de foscos músculos ranço
de visgo e cal manipanso
em que ficaram as marcas
das três Parcas de seu travo
seus requebros seus agravos
nas turvas Evas das trevas.
Notas as covas não notas?
Não vês na noite nas botas?
São dez são cem são destroços
de teus medos e teus ossos
não valem nada são rotas
esfareladas e ainda casas
com noites rasas e vasas.
Casas com as asas incertas
ou abertas de um amor cego
de maus ofegos morcegos
que investem o apuro no escuro.
Para que o mútuo veludo
onde urge e se afunda tudo
onde não sabes que corte
de dráculas nos aguarda
com as fauces rubras de morte
a farda negra a alma tarda?
Notas as brasas não notas?
Ferem as moitas da noite
engulhos olhos abrolhos
e estão mais moças as mansas
velhas sem dentes e tranças.
Tudo se esconde nos bondes
que cortam o precipício
desde o teu fim ao início
com suas lâmpadas acesas
e tilintares e rezas
já tão além de teu rasto
de teu pasto de teu ranço
manirroto manipanso
junto aos uivos junto às ovas
das turvas Evas das trevas.
Trevo de trevas e entraves
te despetalas e estalas:
és essas Evas que calas
és teu estofo de mofo
és essas trevas que levas.
(setembro, 2005)
Foto: Salvador Dali por Philippe Halsman (1947).
* * *
O poeta e crítico literário Mauro Gama nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. Estudou letras clássicas e ciências sociais, em que se licenciou pela UERJ. Estreou em livro com os poemas de Corpo verbal (1964). Ganhou a vida como redator de editoras e obras de referência, entre as quais cinco enciclopédias, como a Barsa 1, a Mirador internacional (onde foi assessor editorial de Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss) e Barsa 3. Trabalhou na primeira fase do Dicionário Houaiss e colaborou na imprensa carioca, sobretudo em revistas da Bloch, no Jornal do Brasil e O Globo. Auto-exilado de sua grande e violenta cidade, vive hoje em sua Quinta da Janaína, em Mendes/RJ. Outros livros publicados: Anticorpo (1969), poemas, Expresso na noite (1982), poemas, Zoozona seguido de Marcas na Noite (2008), poemas; José Maurício, o padre-compositor (1983), ensaio; Michelangelo – cinqüenta poemas (2007: tradução para o português coetâneo e estudo crítico; Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional); Gérard de Nerval: Cinquenta Poemas (2013).
Rio Movediço, do poeta Flávio Corrêa de Mello
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