Angélica
Enquanto ela ouvia, atentamente, cada palavra que saía do poema, via a pá que cavava sua cova. Rasa, torta, uma cova de alguém que não morre por escolha, mas pela falta dela. Respingos de palavras caíam em seu colo e podia ver, ali, tão bonitinhas, espalhadas, tingindo a roupa com cor de barro, o que tinha e o que não tinha sido dito. O problema sempre foi esse: eram muitas palavras entaladas, histórias que nunca seriam contadas. E não era um caso de vaidade, era um caso de veracidade. É preciso escolher a vida e a falta de escolha implica na falta do sopro que conduz a alma.
O trabalho de contar, seja lá o que for, é sempre tenso, denso. Contar quantos tijolos o muro tem. Na calçada, partes pretas e partes brancas. Contar as estrelas do céu. Contar que ama. Parece bonito, uma função desprovida da labuta, mas não é. É penoso, é preciso uma concentração de forças, um interesse profundo por todos os detalhes para não perdê-los e transformar a conta num número inexato, mentiroso pelo lapso, por um simples piscar de olhos. Disse, então, depois de certificar-se várias vezes do possível resultado: se eu disser que te amo, o que isso muda em mim?
E não mudou nada. Angélica sentiu-se como toda mulher que ama, profundamente, uma fração sem representação decimal exata, picada, números que ninguém em sã consciência quer resolver, aqueles que todo mundo tem medo de cortar ainda mais e sobrar só um monte de confirmações do absurdo, dízima periódica, ciclo de dor. E o período que sobrara na conta ainda lhe causava mais desespero, um número 8. Sem explicações ela estava destinada ao infinito.
E estava apredendo, agora, decididamente, a somar. Começou a juntar os cacos das palavras que saíam do poema, lido em voz alta, publicamente, e formar outro tipo de caos, num desespero genuíno, colhia o que saía da pá como quem tenta reter bolhas de sabão soltas no ar. E juntava, o seu colo pesava agora, com tudo que queria, ali, somado, e ela tomava conta para que não saíssem da rede infantil que tinha criado com o tecido da saia que vestia. Eram várias e elas continuavam sendo sonoras, como a fala do poeta que as lia, em bom tom, enquanto olhava nos olhos dos que ali estavam, espectadores de si mesmos. Se alguém perdia alguma parte, ela tratava de pegar essa também, afinal, o que é uma parte a mais para quem soma?
Quanto acabou o recital, Angélica juntou suas coisas para sair. Nem se despediu com medo de que percebem que, no final, tinha roubado palavras de todos e nem ao menos pediu para levar as suas próprias. Saiu pela rua, caminhando, apressadamente. Queria usá-las todas, numa única noite, no êxtase maior de sua intensidade, na escolha pela vida, assim, como era mesmo, multiplicada. Mas andou pouco e sentiu um cansaço absurdo, os pés machucados, os braços quase não aguentavam mais segurar todas aquelas palavras juntas, desconexas. Queria parar, mas todos a olhavam como quem vai abandonar, à própria sorte, no meio da rua, todas as suas escolhas. E continuou por mais algumas ruas, tão cansada, tão exausta da vida que tinha escolhido, que não percebeu que algumas das mais bonitas palavras que tinha guardado escapavam pelos vãos e caíam no silêncio da rua, misturando-se com o grito dos desesperados que tecem sua rotina com as sobras da vida de alguém. Um mendigo agarrou uma delas, apertou contra o peito e gritou já ao longe, enquanto corria: eu roubei, roubei o seu amor!
Angélica já não se mexia, carregada pelo fardo exaustivo de sua escolha, olhava o mendigo correr, feliz, enquanto as últimas palavras desciam pelas suas pernas e deixavam o rastro de uma substração forçada, cavada no coração. Sentou no meio-fio e viu que o que sobrava em seu colo era apenas a cor do barro sujo de sua cova rasa. Uma mancha que nunca mais sairia. Ela, então, deitou-se na terra fofa e cobriu-se com a mesma cor do barro de onde sua vida tinha sido moldada, na esperança de voltar ao minuto exato de sua criação pela voz do poeta, ouvindo o barulho de ser enterrada viva e vendo, ao fundo da luz que nos leva de volta ao estágio final de sua conta, a geratriz de sua dízima periódica.
Ella
Para começar, há de se findar. E o findar é sempre angustiante porque não chega. E é tão esperado, ansiado, pelo mesmo motivo. É tão óbvio. É o que se quer e ao mesmo tempo o que se arrepende de querer.
Eu fui ao encontro mesmo assim. Porque entre o fim e o começo, escolho os dois. Eu sou assim, instável, e não sei nunca por onde começar. E quando começo, quero terminar logo, me desespero. Me envergonho de fazer, me arrependo de não. Calcei duas vezes o mesmo sapato e não gostei. A primeira porque achei que não deveria usá-lo. A segunda porque tentei dar a chance de experimentar, mas a primeira dúvida continuava lá.
Já era tarde, eu estava atrasado. E pensava que o atraso seria um motivo para não ir. E pensava que a escolha errada poderia ser anulada por um outro motivo. E que esse motivo teria que servir para que eu mesmo não enxergasse arrependimento. Que tipo de motivos são esses? Se eles existem, quero-os emprestados por tempo indeterminado.
Cheguei e não havia nada de errado. Não tinha um motivo para voltar. Por enquanto eu não tinha me arrependido de nada. Estava até gostando. O gosto da surpresa é muito melhor do que o da expectativa. Pensei que se, por algum momento, eu parasse de suspeitar do arrependimento, poderia me surpreender. E fiquei mais leve. Mas foi só por cinco minutos. O golpe fatal veio tão sutilmente que eu nem percebi.
Me gelou a espinha. Dei um salto para trás e saí correndo. Ela estava ali, na minha frente, rindo feito uma criança sapeca. E acenava, de longe, me vendo correr desorientado, como se quisesse me dizer: não se preocupe, sou assim mesmo, espontânea.
E eu fiquei olhando para trás enquanto corria, o que me dava uma sensação de vertigem, quase uma loucura. Suas vestes negras, movimentadas pelo meu olhar de idas e vindas ao correr, faziam-na parecer qualquer outra coisa. Não sei bem como vou dizer isso, mas tenho quase certeza de que nesse exato momento vi a morte vestida de vida.
Sabrina Sanfelice nasceu em Araras (SP), mas considera que o sangue de suas veias contém a mesma água da pequena Analândia – local onde vive sua cabeça, no topo do morro do Cuscuzeiro. Cresceu no meio do mato, cercada de histórias de saci misturadas com benzedeiras, quando bicho-de-pé não era doce cor-de-rosa e a morte de qualquer um mexia com a história de todos. Nesse pequeno mundo, teve contato com suas primeiras referências literárias que a fizeram (es)colher seu universo atual: é vizinha da Casa do Sol de Hilda Hilst, onde hoje é o Instituto (IHH), o qual faz questão de ajudar em diversos projetos. É Mestre em Multimeios pela Unicamp, graduada em Jornalismo, fotografa desde 1996 e escreve desde o antigo prezinho, do caco de tijolo ao seu atual blog literário (http://www.goodnightcaptain.blogspot.com.br/). Participou, com suas fotografias narrativizadas, de diversas exposições individuais e coletivas, assim como festivais internacionais (Paraty em Foco e FestFotoPoa).