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Lazarus - Otavio Linhares

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de repente é o quarto. e não é mais. de repente é a sala. e não é mais. de repente do banheiro vem a chuva. e o barulho que ensurdece. o barulho da chuva. tapo os ouvidos com a ponta dos dedos. a água tilintando nas paredes de ferro me ensina a odiar o caos. penso em ambos e descubro que estamos ligados desde o nascimento.
[eu + meu medo da água + o caos]
na sala a mesa branca. só a mesa branca. a sala está vazia. as dobras das paredes são o infinito.
e eu de cuecas.
eu de novo na sala branca. no meio da sala branca. e a mesa. e em cima da mesa a faca de usar.
tem solidão na faca. tem a tristeza que é melancólica. tem a embolia das horas.
é isto?
sim. é você.
então ficamos em silêncio para nos homenagear.
na parede estão todos os números do mundo como se eu os tivesse escrito durante a vida inteira num ato reflexo de auto escravidão começando ainda criança recém alfabetizado partindo do zero. há muitos zeros aqui. e é tudo compreensível.
e de repente é o quarto de novo.
e tem a cama de transar e as memórias fotográficas que fabulei pra ser feliz espalhadas pelo chão. e tem o espelho pra se não-esquecer.
no espelho eu de cuecas me olhando na frente do espelho e uma luz fria azulada sai dos olhos branquiscuros. ela não me deixa enxergar.
bem devagar
[porque estou cego e a partir de agora só posso me mover devagar]
                      movo a cabeça pro lado esquerdo mirando a janela pra me sentir o vento trazendo coisas mortas. sou o vento me dizendo coisas. palavras que eu não quis escutar no parto.

---

você está em cima de um trampolim e mais três estão com você. à sua frente.
1
2
3
4
você ouve seu nome ser repetido infinitas vezes com pausas curtas num tom monocórdico lento e grave.
não tenha pressa. cada um terá a sua vez.
o primeiro faz a pergunta que tem de ser feita
[ele nunca se arrepende]
                                                                           e deixa seu corpo cair em direção ao buraco negro que é o ralo por onde devemos escoar no fim.
o segundo é um amigo muito próximo e tem lágrimas nos olhos. esse cai em silêncio.
o terceiro é a sombra. muito próxima também é a sombra. você tenta tocá-la. e ela é fria. e ao cair ela olha para trás. você não quer que ela caia. não quer ficar sozinho. ela ri. gargalha.
está feito.
você é o próximo e o seu corpo se precipita em direção à ponta do trampolim.
agora serão anos até você entender a queda.

---

estou morto.
há silêncio.
e no silêncio há pessoas.
há pessoas e elas se importam com o corpo que jaz.
[contrariando meu único desejo de vivo]
todas de preto. todas tristes. todas tristes e reunidas porque sabem que vão morrer. e isso as deixa tristes. e descubro que foi isso que nos separou.
fico feliz em saber disso agora.
são todos paranormais e seus corpos invadem as lágrimas com seus rostos sujos.
rostos sujos de vilania.
e de repente é uma multidão enfurecida por dentro. o coletivo da vil-sabedoria.
hipócritas se autodevorando.
saio dali.
cavo a terra vermelha com a boca e com as unhas. desinvado a caixa preta de madeira que me deram. passos largos sigo em frente. reto.

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na primeira esquina são prédios caindo. prédios de vidro estilhaçando no asfalto. prédios em cima de prédios em cima de prédios. um atrás do outro caindo no vazio preenchendo o silêncio. e os cacos metralhados voando rasgam o papel de parede da minha pele. e compõem a minha armadura.
nesse instante emerge do sangue um guerreiro herói medievo cravejado de vidros e de açoite na mão. e o açoite tem espinhos duros de metal forjado no paraíso por mãos abençoadas. e o açoite se choca contra a armadura quatrocentas mil vezes. bate. bate muito. esbraveja contra o corpo e soca chão. bate nas costas. nas pernas. na face.
e todos à minha volta se olham na armadura espelhada e pedem clemência.
o escravo-eu ajoelha.
mas a mão que abençoa é a mesma mão que fabricou o açoite e ela nasceu para segurá-lo com força e fazer o que tem de ser feito.
é a regra e sempre foi assim.
a mão tem de bater cada vez mais.
e mais forte.
e mais forte.
e mais forte.

---

do outro lado da rua há uma discussão. são em número de sete e não conseguem decidir mais nada. olhos fundos e perplexos já esqueceram como se faz. me desconcentro porque é preciso para avançar. desencaixo as mãos e as largo ali mesmo no asfalto e me dirijo ao mar.
e de repente sou eu de novo.
e o mar.
tenho a única lembrança que é só minha.
[eu criança brincando com a água do mar
catando pequenos siris que se escondem na areia]
e ele me recebe novamente com o carinho das eras. e me acalma pelos pés. depois tornozelos. e joelhos. quadris. pescoço. nos abraçamos e assim nos afogamos um pelo outro. de costas para o mundo deslizamos um dentro do outro fazendo amor. ainda dá tempo de pensar em nada e ver o sol furando com seus tentáculos o verde da água. esqueço o sol. conto cento e trinta e seis bolinhas antes de tocar o fundo do mar.
essa ainda não é a calmaria que pensei ter conhecido nos livros.
há muitos peixes aqui.
eles me devoram e fogem.
agora sim.
agora existe a caveira e o limo que começa a se formar.
eu moro aqui.

 Ilustração: deviantART


Otávio Linharesé ator, escritor, editor, compositor e especialista em cafés especiais. Tem formação em Filosofia, História, Dramarturgia e Artes Cênicas. Hoje trabalha como consultor de qualidade em cafés especiais na Rause Café e Vinho, é editor do selo ENCRENCA – Literatura de Invenção e da Revista Jandique – Literatura Curitibana e ator na Dezoito Zero Um Cia de Teatro. 
Blogs do autor:  http://otaviolinhares.wordpress.com/ 
                         http://detetivelinhares.wordpress.com/ 



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