EUTRAS CORRESPONDÊNCIAS: Carta II – ANO NOVO!
SABINE:
Querido amigo Alex,
Desejo-te um ano delicioso! Como não costumo festejar o aniversário do nosso Senhor, aguardei tal data para contar, também, as boas novas. Afinal, dizem que no Brasil o ano começa em março!
Fico feliz quando o "de novo" sugere o "novo" e não o "novamente". Foi fantástico me encontrar novamente com amigos antigos e desfrutar de algo novo. Todavia, angustia-me encontros iguais, repletos de falas e de lembrancinhas iguais. Discursos de incentivo e auto-ajuda. Todos terão de dar conta de milhares de coisas, dar conta... como seria mais fácil que as pessoas começassem a se ouvir, não? Certo que é complicado saber o valor das coisas mas garanto que facilitaria a vida de todos se elas optassem por trabalhar como garçonetes.
E os presentes? São os tais que se compram para dar a qualquer um. Lembro-me de estar numa festa dessas a celebrar a chegada de 2011 e, cansada de tanta caretice e tanta falta do que falar, imersa no presente de todos, desejei entregar um livro de quadrinhos do Charlie Brown (já te contei que adoro os quadrinhos do Charlie Brown?) para minha amiga secreta. Ela não entendeu... e depois eu não entendi o que fazia ali, naquele lugar onde não podia sequer supor que alguém entendia o que eu falava. Desesperada, propus um brinde e num ato-falho que depois envergonhou-me pois virou quase um jargão popular e me fez questionar a criatividade de meu inconsciente, disse: "Feliz dois mil e ouse!". Obviamente só eu ouvi. Bastou. Desde dois e onze eu ouso.
Epifanias! Soube que Joyce lançou um livro com este nome. Só assim para eu acreditar nos mortos! Seja bem-vindo, Joyce! Porém, digo-lhe que dentre seus lançamentos, encantei-me por Nora. Parece que eles também gostam de cartas... Volto a mim, ou a ela, como preferir...Sensações de finalmente ser grata à vida pela enorme possibilidade dos acasos. Sim, há casos!
Tal movimento foi estimulado pelo meu charmoso famoso analista. Ao denunciar minha angústia e vontade de ir para lá (tal como a menina rosa, lá, para trás da serra do mim, lá onde posso estranhar-me para poder desfrutar de nova apresentação), disse: "quero fugir!", "De quem?". Ao responder com a enorme lista das pessoas que me incomodam ele me responde: "e depois?" Silêncio...Como possuo escuta-falha, rapidamente agradeci o incentivo; "ide, pois!". Nunca imaginei que fosse tão fácil!
Saudades,
Sabine
ALEX DAVID:
Sabine,
(....... trecho ilegível..........)
Bom, mas isso nem é importante, importante é que há algum tempo, criaram um país chamado Eritréia, importante é que Pasárgada não existe mais e que havia um Rio Nilo pela metade debaixo da unha do dedo médio da mão direita de Jane Birkin — porque o dedo médio se chama dedo médio parece ter alguma coisa a ver com a Idade Média, ao menos foi o que me informou, aos berros, um filólogo louco que tenta por que tenta me convencer que nunca falará javanês. Ando preocupado com minha facilidade em produzir conexões anômalas. Por fim, informo que já mudei de religião três vezes nesta semana, abandonei o heliocentrismo e e me converti nihildescentrismo radical.
Quase beijos,
Alex
SABINE:
“Alex Pi”,
Preocupava-me tuas aventuras, quer dizer, distância. Cheguei, inclusive, a despedir-me de você. Quando percebo sinal de distanciamento, vou-me antes. Quer dizer, sempre vou-me antes.
Certa vez perguntaram-me "mas por que você já vai embora?", respondi, "sempre vou antes que queiram que eu vá". Constantemente vou embora. Faço jus a minha insustentável leveza (será?). Não sei, mas ao menos carrego um de meus nomes comigo (Sabine).
Vou-me quando sei que volto. Sempre saio sem olhar para atras de um carro ou de um encontro. Nunca permito aquele minuto "a mais" do abraço. Mas sempre há outro encontro e outro abraço.
Pensava nisso quando soube noticias de você. Parece, então, que já conversávamos.
Ir embora antes me ilude e faz-me acreditar que não perco. Nunca! Até que sou invadida pela morte que entra sem aviso prévio e lembra-me que alguns dos meus também vão e sequer dão-me o tempo necessário de um abraço.
Acho que por isso insisto em sonhar com minha avó. Sinto, sempre, o seu cheiro em sonho e acordo num misto de saudade boa e angústia. Perco-a, ao acordar, toda vez que sonho com ela. Logo em seguida me acalmo pois lembro de um amigo português que escreveu um livro belíssimo sobre a intermitência da morte. Certamente o sofrimento seria maior caso a imortalidade fosse possível.
Num breve deslizamento, recordo-me de meu pavor. Ouvi certa vez que era a construção de minha fantasia inconsciente. Optei pela ignorância e por saber nada sobre o assunto! (digo saber nada pois sei que você é psicanalista e não quero cair nas tuas armadilhas da linguagem: "não saber nada=saber tudo". Sou precavida. Sou pré-vida.)
Volto ao meu pavor, compartilho contigo, querido amigo.
Mais do que morrer, apavora-me a idéia de, indefesa, ter um monte de olhos sobre o meu corpo morto. Quando visito um cemitério, por mais próxima que seja da família ou do falecido, nada me impede de pensar que estou sobre corpos que são comidos por bichos bem ali, perto de mim. Também indefesos.
Sequer consegui ler "Angústia" de Graciliano Ramos pois se inicia com semelhante descrição.
Salvador... era o nome do morto que vi. Que tive os meus olhos sobre aquele corpo, indefeso. Resolvi protegê-lo! Não deixei ninguém mais ver. Tal como um cão de guarda até que seus verdadeiros cuidadores chegassem... Para minha surpresa, ninguém chegou. Não havia sequer o desejo de por os olhos em cima para confirmar a morte do amado. Amado? Aí, diante do total desamparo fui fisgada por aquele morto-louco desconhecido e abandonado.
Eis que me vem um senhor com uma bíblia na mão e me diz: "posso ver?",..."gostaria de ler um trecho da bíblia para ele". "Claro que sim" respondi e "Ufa" pensei. Salvador sequer conseguiu salvar-se de viver intensamente em hospitais psiquiatricos. Talvez, por portar tal nome, pensaram que ele não precisava de ajuda.
Voltamos aos nomes...
Bom, para poder achar graça da desgraça, ainda sobre assunto, conto algo que entrará na série "o que não acontece, acontece". Você bem sabe que eu nunca soube o que é ter nome próprio. Nunca foi minha propriedade meu nome. Tanto que hoje, eu e eutras, temos vários. Fiz bom uso de minha história!
Eis que estava em uma Starbucks em Nova York, ansiosa por saber qual nome receberia. Eram vários, um mais brega que o outro: Lucy, Lou, Low etc.
Um minuto de silencio após o gripo da garçonete. Dois, três, até que me dei conta que era chamada pelo nome de minha irmã morta. Zonza, peguei o café para acordar.
Com carinho,
Sabine