A fúria sem som
Cadê a Tereza? Faz tempo que ela não me dá banho. A mão da Tereza era leve, parecia o beija-flor que cheirava as flores da mamãe. Ela me deixava tão cheiroso que um dia quase o beija-flor veio me beijar. Ele não veio, mas a Tereza me beijou. Ela me beijava e abraçava e depois beijava de novo. E eu desenhava o cheiro dela enquanto ela passava a mão no meu rosto, temos que fazer essa barba hoje, Benjamim. Tá igual espinho. Espinho branco, onde já se viu? De manhã, à tarde e à noite ela me dava um monte de balinhas coloridas, sempre iguais. O gosto não era muito bom, por isso eu não queria comer. Mas ela dizia que era pra dar força pra minha cabeça, aí eu engolia sem mastigar. A Tereza cuidava de mim como se eu fosse um filho. Mulher foi feita pra ter filhos, ouvi vovó dizendo pra mamãe. É obrigado igual a ir na missa de domingo, vó? Ela só olhou pra mamãe espremendo os olhos, a boca feito um arco curvado pra baixo. Vovó falava bastante, mas agora eu não ouço mais a voz dela. Ela foi ficar junto com o vovô. Não sei como, mas lá de cima ela ouve tudo o que eu falo. Você acha que a camiseta vai sair por mágica, Benjamim? Levanta o braço direito. Não estou levantando direito, dona Elizabeth? O outro braço. Vamos, antes que a sua mãe chegue. Mamãe foi no circo com o Willian? Seu irmão está trabalhando, como faz todos os dias. Sua mãe também. Mamãe trabalha no circo? Bem que ela podia pedir emprestado o sapato do palhaço. Depois eu devolvia, era só pra mostrar pro Willian que o sapato não combina comigo. Mamãe deve ter ido conversar com o mágico pra ele fazer o papai reaparecer. Mas como será que ele entrou na cartola? Cadê a Tereza, dona Elizabeth? Mudou de cidade faz mais de três meses. Pra onde ela foi? Pra longe. Onde fica o longe? Serventia de mulher que não tem filho é limpar chão mesmo. A Tereza não serve só para limpar chão, eu queria ter gritado pra vovó. Mas meu silêncio alto chegou aos ouvidos da Tereza: ela sorriu pra mim com os olhos. Vamos tirar a bermuda, Benjamim. Será que a dona Elizabeth vai fazer aquilo de novo? Que bermuda imunda! Você rolou na terra a tarde toda? Fiz uma casa pro Dentuço perto das flores da mamãe. A senhora tem mais neve na cabeça do que eu. Está nevando lá fora? Papai Noel deve estar chegando. Outra coisa: a Tereza trata esse homem de um metro e oitenta como se fosse uma criança de sete anos. Assim ele vai continuar babando pelos cantos e rabiscando as paredes da casa até morrer. Um metro e oitenta é mais ou menos que a altura de um avião? Preciso mostrar pro Willian que eu sou grande e forte como o papai. Quem sabe ele para de dizer que eu tenho que ir pro hospital. Hospital é lugar de gente doente, eu fui lá ver a vovó antes do vovô puxar ela pra perto das nuvens. É tudo branco e a comida vem numa tigela de plástico rachado. Vovó não devia gostar daquela comida, por isso estava tão magra. Mamãe disse que ela não conseguia comer porque estava pagando não sei o quê, pecado, ruindade, não lembro. Como vou tirar sua cueca se você está com quase cem quilos? Me ajuda, Benjamim. Não adianta chorar, afasta os pés. Não me force a repetir o que fiz ontem. Passei a mão nas minhas pernas, das listras vermelhas ainda saltava uma coisa doída. A cinta que ela usou estava pendurada junto com a toalha. Alguém mexeu nas minhas joias, Carmen. Só pode ter sido esta negra fedida. Tereza era tão cheirosa. Eu desenhava o cheiro dela. Você tem que tomar uma atitude, filha. Fica quieto, senão vou te machucar com a lâmina. Levanta a cabeça, você tem muito pelo aqui no pescoço. Pelo é pra proteger do frio, por isso o Dentuço nunca fica resfriado. Ele é muito velho, só tem pelo branco. Eu tenho mais pelo preto que pelo branco. A vovó usava uma mágica pra sumir com os pelos brancos da cabeça. Mas não durava muito tempo, não. Logo os brancos iam empurrando os pretos e ela tinha que fazer a mágica de novo. Tá ardendo meu olho, dona Elizabeth. Como você é chorão! O que você tem no meio das pernas? Ela sabe o que tenho no meio das pernas. Enfia a cabeça embaixo d’água, Benjamim. Assim, rapaz! Mas eu não consigo respirar, preciso de uma máscara de mergulhar igual uma que vi na televisão. Eu já assisti um monte de coisa legal na televisão. A senhora tem televisão, dona Elizabeth? Eu não peguei joia nenhuma. A senhora me conhece desde que nasceu, dona Carmen, e sabe muito bem que eu sou direita. Eu nem tenho pescoço pra usar essas coisas. Por que você acha que essa preta nunca teve filhos, Carmen? Que homem ia sujar o pau com ela? A senhora sempre procurando um jeito pra acabar comigo, né, dona Lúcia?! Mas o seu Horácio, que Deus o tenha, não achava a nega aqui fedida. Lave a boca pra falar do meu marido, velha encardida. Ele me procurava quase toda noite no quartinho, a senhora sabe muito bem. Leva o seu irmão lá pra fora, Willian. A Tereza também dava banho no vovô, Willian? Levanta o braço. Deixa eu esfregar aqui, vira. Vira mais. Benjamim, você tomou os remédios da tarde? Cadê a Tereza?Cadê a Tereza? A Tereza contava história enquanto me dava banho. Ela disse uma vez que conheceu o mundo inteiro num dia só. Ela ia de cidade em cidade voando de balão e fotografava tudo lá de cima. Ela me mostrou as fotos no computador do Willian. A senhora já viu as fotos? Mas demorou muito pra ela me mostrar porque ele não queria emprestar o computador. Disse que o computador era pra trabalho, não pra essas coisas que não servem pra nada. Como a gente mede a serventia de uma coisa? A Tereza não sabe roubar nada não, Willian. Eu sempre deixei meus bonecos em cima da cama, no chão, no banheiro e eles sempre estavam lá quietinhos quando eu voltava. Às vezes ela punha em cima do armário, é verdade. Mas nunca sumiu nenhum. Você está me molhando inteira, Benjamim, olha só a minha blusa. Desculpa. Vou estender a blusa aqui no box. Ontem a senhora estendeu na maçaneta, dona Elizabeth, lembra? Ou foi antes de ontem? Eu não quero que a Tereza vá embora, mamãe. Você tem que falar pra vovó que ela não fez nada. Ela cuida de mim como se eu fosse o filho dela. Como um neto, Benjamim. Ela cuida de você como um neto. Dona Elizabeth, a calça da senhora também molhou? Você já consegue entender como é a sua vó Lúcia. Quando ela põe uma coisa na cabeça não há quem tire, filho. Vem, eu vou te dar seu remedinho da noite. Mas a Tereza vai sair assim nesse escuro, mãe? E se o homem do saco pegar ela? E se a menina do Exorcista vomitar verde na cara dela como fez com o padre? Ela vai pegar doença. A Tereza não pegava assim em mim. Eu não pegava assim na Tereza. O que é isso que acontece quando a dona Elizabeth pega em mim? Eu não gosto do que acontece. Não posso gostar. Por que a senhora não é tão branca como a vovó, mamãe?Que pergunta! As pessoas nascem diferentes, Benjamim.Veja, você não é igual ao seu irmão. Como eu sou, mãe? Você é um homem bom, muito especial. Um anjo de Deus. Dona Elizabeth, não gosto de fazer isso. Eu sinto um negócio estranho, parece que alguma coisa aqui dentro cresce, cresce, cresce até explodir. Tenho medo. Ai, Benjamim, cala a boca. É só você ficar paradinho aí na parede que eu faço o resto. Mas eu não consigo ficar paradinho, o azulejo está frio. Põe uma toalha nas costas e outra na boca. Benjamim, esta é a Beth. Ela vai cuidar de você como a Tereza cuidava. A partir de agora você tem que obedecer a Beth, ouviu bem?Fecha a tampa do vaso e senta aí. Isso. Mas a senhora é muito pesada pra sentar no meu colo. Vai. Bem-ja-mim!Bem-ja-mim! Já! Já! Para, dona Elizabeth, por favor. Para. Para! Endoidou de vez? Me dá essa lâmina, Benjamim. O que você está fazendo, retardado? Ai! Para, débil mental. Demente filho da puta. Socorro! A senhora nunca mais vai fazer isso comigo. Nunca mais. Nunca... Dona Elizabeth! Dona Elizabeth, a senhora está me ouvindo? Tereza! Tereza, cadê você?
Violeta velha
A mancha arroxeada que abraçava o olho esquerdo não foi suficientemente apelativa para que Timóteo continuasse o movimento. Desobediente, a mão manteve a faca enferrujada imóvel, encostada à pele do pescoço meticulosamente talhada pelo tempo. O espelho, estreito como seu espírito, uma vez mais testemunhou a covardia, silencioso. Com esforço, o suor que nascia farto nas fontes nuas vencia as valas do rosto e repousava salgado nas clavículas.
Olhou para o lado, olhos arredios, e notou os pelos brancos que começavam a se alastrar pelo rosto do menino deitado no sofá (seria sempre um menino para ele). “As crianças são naturalmente cruéis”. Lembrou-se da frase ouvida há quase setenta anos, numa tentativa inconsciente de dar sentido ao que sentia, de explicar aquelas coisas que não cabiam em seu mirrado peito. Os acontecimentos antigos pareciam esculpidos na memória; os recentes lhe escorriam pelas fendas da massa cinzenta. Mas a visão é uma grande aliada da lembrança senil: os hematomas raramente abandonavam seu corpo. E doíam. Doíam muito. Contudo, doíam menos que a ciência de que o autor deles era aquele menino.
O álcool exalado pelo corpo embutido no estofado inundava o minúsculo cômodo, metade da casa alugada. As paredes, com as intimidades à mostra, compartilhavam sua aspereza com o senhor de cabelos esbranquiçados. Errei, Senhor. Um vaso não sai torto se forem boas as mãos do oleiro! A parábola era perfeitamente plausível: Timóteo trabalhara quarenta anos na olaria da pequena cidade e orgulhava-se de nunca ter recebido uma reclamação sequer sobre os vasos e vasilhas que produzia.
Ficou maior o espelho e, de relance, ele reparou na mesa de madeira: as migalhas do pão seco que comera no almoço refletiam a luz do sol a entrar pela esquálida janela, acima do sofá. Aquele feixe de luz parecia suturado ao ambiente: a vitalidade dos pingos luminosos que tremeluziam sobre a madeira surrada oprimia o velho. Na verdade, evidenciavam que, por mais sórdida que seja a situação, sempre há pontos de luz. E ele não soube identificar isso no filho. Apertou veementemente o cabo da faca na esperança de esmagar a sua culpa. Precisava dissecá-la, mas era como um legista recém-formado; não encontrava o fio para conduzir sua regressão; a memória, uma colcha de retalhos com buracos. De súbito, veio à mente o nascimento do filho: sem clemência, a parteira enfiara um ferro na esposa, pra que um ferro desse tamanho, dona? Quanto sangue, meu Deus! Calma, meu bem. Nossa Senhora do Bom Parto há de olhar pela gente. Os dedos da mulher, que há instantes pareciam cravados à lateral da cama, agora tremulavam a poucos centímetros do chão. Era obsceno o contrastaste entre a boca roxa dela e os berros do menino que desocupara o ventre.
O velho sacudiu a cabeça. Com isso, reavivou a primeira prisão de Afonso. Ele não fez nada, seu guarda, aquele pacote não era dele! Os homens de cinza o atiraram no chão de barro batido feito um saco de cimento. Algemaram-no. As sirenes invadiram o quarteirão e, como ímãs, atraíram os vizinhos para fora de suas casas, espetáculo ao vivo, gratuito. Dois anos e oito meses no reformatório, até atingir a maioridade. Os olhos baços do espelho morderam-no novamente. A cabeça do filho tombou levemente e os cabelos sebosos misturaram-se ao suor da testa. Nem de longe lembravam os fios vivos da infância de Afonso. Penteie direito, senão o cabelo eriça em cima, menino. Tem que ficar bonito no retrato que vamos colocar na estante, perto do da sua mãe. Ela ficaria orgulhosa: nosso menino na primeira comunhão! Pela boca entreaberta do filho deitado escorria uma gosma esverdeada. Timóteo sentiu nojo de Afonso como no dia em que ele começou a roubar as coisas de casa. Preciso de um trocado, pai... Velho mentiroso, eu sei que você tem dinheiro. Cadê a grana da aposentadoria? Após destruir a pauladas os parcos objetos da sala, o jovem saiu carregando o ferro de passar roupa.
Tossiu violentamente o homem do sofá, mas não abriu os olhos. Estava ali fisiologicamente, emprestado à atmosfera. Do movimento de descida do peito desnudo nascia um ruído tão imundo quanto seus pés. Em tempos desbotados, o velho correria para acudir o menino, dando-lhe uns tapinhas nas costas, como lhe ensinaram as irmãs da igreja que frequentava religiosamente. Porém, os cabelos ralos não se moveram. Tampouco a barata que passeava sobre o porta-retratos foi capaz de suscitar-lhe alguma reação. O corpo de Timóteo estava suturado ao momento. A mente, por sua vez, parecia suspensa; como uma bailarina, abraçou a lembrança da festa que preparara para Afonso: o bolo custara-lhe duas semanas de trabalho. Os salgados, o refrigerante e as bexigas faziam-se presentes graças às economias que guardara debaixo do colchão de palha. O sacrifício valia a pena: a primeira década do filho carecia de uma celebração digna de fotografias. Para testemunhar o apagar das velas foram chamados quatro amiguinhos de Afonso e também André, fotógrafo amador. Depois do bolo cortado, a foto oficial da festa. Os convidados nem precisaram espremer-se para o enquadramento. Sorrisos e abraços... E gritos... Solta meu filho, seu filho da puta! Quem era aquele homem de aproximadamente quarenta anos que invadira a festa e espancava o menino? As crianças saíam correndo aos gritos enquanto o homem desferia socos e pontapés no protagonista da festa. Por que não acudi meu filho? Sangrava, sangrava e o pai soldado no chão, atirando palavras.
Um ruído, desta vez mais negro, e Timóteo voltou novamente a cabeça para o sofá. Era ele o agressor! Por que fez isso com você mesmo, Afonso? Timóteo teve ímpetos de arremessar a faca na cabeça que pendia do móvel despelado, mas não desceu da intenção. Pela primeira vez em anos experimentou o sal nascido nos olhos. E a ardência, que começara nas cicatrizes dos lábios, espessara-se e avançava boca adentro deixando rastros de azedume pela língua. O líquido desceu esfolando o esôfago, avalanche cáustica que arrastava a impotência de um pai negligente, bateu no estômago e voltou impregnado de bílis. Com o passado entre os dentes, Timóteo dessentiu os membros. Observou o olho esquerdo, gineceu de uma violeta velha, murcha e úmida, até o sol vestir a capa da noite.
Contos de Violeta velhas e outras flores (Editora Patuá,2014).
Ilustrações: Matheus Arcaro (Rosto Azul e Rosto Verde) .
Matheus Arcaroé formado em Comunicação Social e também em Filosofia. Pós-graduado em História da Arte. Diretor de Criação publicitária e professor de Filosofia e Sociologia. Além de redator publicitário, é também escritor, com artigos, crônicas, contos e poesias publicados em diversos portais e revistas nacionais e regionais. Seu primeiro livro de contos Violeta velha e outras flores (no qual constam os dois contos anexados), será publicado em outubro de 2014, pela Editora Patuá. Nas horas vagas atua ainda como artista plástico. Site pessoal: www.matheusarcaro.art.br