Monge peregrino é detido na fronteira de um pequeno país mergulhado numa longa guerra com país vizinho (a guerra levou os dois países quase à aniquilação completa e muitos dos locais sagrados de peregrinação foram totalmente destruídos); levado até um decadente quartel de fronteira, o monge é mantido sob vigilância do chefe do arsenal; mas enquanto os dois conversam, uma reviravolta surpreendente é, pouco a pouco, sendo construída...
[cena 7]
[numa canto, meditando entre fuzis e partes de armas desmontadas, o monge pareceu alheio por dias (talvez semanas) àquela realidade, mas eventualmente o militar e ele trocavam palavras sobre pequenas questões objetivas, com o passar do tempo, as conversas começaram a durar mais, os assuntos mais subjetivos e diversos... até que numa manhã...]
- pq se tornou monge?
- minha família era pobre e me entregou aos cuidados do mosteiro... [os dois se entreolham numa longa pausa]... e você? a vida militar?
- as mesmas razões, a vida dura se encarregou de me encaminhar, e com o tempo, tudo pareceu se encaixar, aqui aprendemos sobre a vida, a disciplina, a lealdade, os valores...
- entendo... o mosteiro e o quartel... são o mesmo...
- duvido, aqui somos forjados com aço e sangue... e orgulho... [o militar acaricia suas insígnias]
- ah sim, o orgulho [o monge passa a mão sobre sua cabeça raspada, como se acariciasse um pensamento recém-nascido]... e do que sente orgulho?
- de pertencer ao meu país e fazer minha parte, aqui, agora é tudo que tenho, minha família [embarga a voz]...
- a guerra?
- sim, todos se foram, esposa, filhos... os velhos primeiro, quando começamos a racionar água e comida...
- mas os jovens devem ser poupados para lutar... o orgulho tem suas armadilhas, não acha?
- a guerra impõe sua verdade... e não é uma verdade agradável... nunca é...
- as famílias que não mandam seus jovens para lutar acabam tendo que fugir, há orgulho na deserção?
- a deserção é crime... a punição é o fuzilamento sumário... o sacrifício dos mais aptos é uma exigência da guerra...
- minha família me entregou a Buddha para se orgulhar de mim, mas também sei que na montanha onde nasci, uma boca a menos sempre facilitou a vida dos mais velhos...
- então se ressente de sua família, monge? foi abandonado?
- ahahahahaha, Buddha não abandona, acolhe! mas também exige grandes sacrifícios! como a guerra...
- sei sei, mas no mosteiro não há lados, não há ataque ou defesa! não há o perigo da invasão inimiga!
- ah não? nosso maior inimigo é a mente... [pausa [se entreolham] o militar aperta as pálpebras, desconfiado] e depois o coração se deixa convencer pelas mais sedutoras mentiras... [continua o monge, que vez por outra flexiona o pescoço passando a mão na ampla careca] ...Maya, a Ilusão, é um inimigo poderoso com o qual, mais cedo ou mais tarde, aprenderemos muito sobre nós mesmos... e você enfrentará seu maior desaf...///
[há uma grande explosão próxima, o militar se assusta, encolhendo o corpo [é um bombardeio inimigo]; o monge, até então em lótus, se levanta, sereno... um outro militar entra no arsenal e demanda atenção do chefe, um grande lote de fuzis é solicitado para breve... quando o soldado sai, o militar se volta para o monge, que tendo tirado um fuzil do armário na parede, o engatilha com grande habilidade e feição grave, surpreendendo o chefe do arsenal... que leva por reflexo a mão ao coldre de sua pistola, e quase a saca, num reflexo automático...]
- mas como...?! [o militar está surpreso e confuso]
- muitas destas armas serão necessárias em breve... permita que eu o ajude a prepará-las... [enquanto se oferece à tarefa tão alheia ao mundo monástico [ou não?], o olhar do monge resplandece, e depois de uma curta pausa, num golpe rápido, quase sobre-humano, o monge desmonta a arma em 3 partes [plác, trác, pá], com habilidade inacreditável, dispondo-as sobre a bancada...] ...posso ser mais útil do que imagina... [completa o monge, sereno, enquanto uma explosão mais potente que a anterior, abala os pilares da sala]
PARTE 5
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Alexandre Guarnieri (carioca de 1974) é poeta e historiador da arte. Atualmente pertence ao corpo editorial de mallarmargens e integra, com o artista plástico, músico, ator e poeta, Alexandre Dacosta, o espetáculo mutante [versos alexandrinos]. "Casa das Máquinas" (Editora da Palavra, RJ), de 2011, é seu livro de estreia e está disponível aqui. Seu próximo livro, "Corpo de Festim" (Confraria do Vento), será lançado em 2014. Email.