Ó meu sonho d'amor, tu me acompanha
Por esta vida, às vezes tão escura,
Por esta vida, às vezes tão estranha.
(em Triunfo)
José Albano (1882-1923) foi um dos mais singulares e importantes poetas de nossa literatura. E essa condição não se deve por sua biografia, repleta de lendas, caricaturas, cuja mítica figura, anti-erótica, sisuda, com os inseparáveis monóculos, adepto de longas viagens e peregrinações pela Europa, onde sustentava-se por meio de subscrições para o seu livro, acabou por misturar o poeta desse José Albano que, ao gastar todo o dinheiro em um caríssimo restaurante em Paris, proclamava que “se o mundo fosse justo, os poetas teriam direito ao néctar”, num processo muito semelhante ao que ocorreu com Camilo Pessanha, cuja vida real, longe das biografias cheias de maldizeres, só está sendo esclarecida agora. Poeticamente, José Albano confirma a tese de sincronismo na produção da Belle Époque brasileira. As suas Rimas datam de 1912, mesmo ano em que Augusto dos Anjos lançou o seu Eu e em que Alberto de Oliveira re-lançou as suas Poesias, e somente um ano depois da publicação de Ilusão, de Emiliano Perneta. Ou seja, em um mesmo período, um autor de estilo quinhentista (José Albano), outros dois simbolistas e um parnasiano ortodoxo publicavam os seus livros: havia um sincretismo desses estilos em nossa literatura, não um “pré-modernismo”, termo que supõe confluência de todo o movimento literário para o Modernismo.
José Albano com os seus inseparáveis monóculos (Créditos: Blog Panorama de Literatura) |
Para Manuel Bandeira, que publicou a poesia completa do poeta cearense em 1948(com exceção à produção juvenil), José Albano “escreveu um dos mais belos sonetos da língua portuguesa e de todas as línguas”, além de ter vivido “perfeitamente feliz dentro do seu sonho, na loucura que Deus lhe deu”. Na publicação original das Rimas de José Albano, havia a sua “Ode à Língua Portuguesa”, 10 sonetos e as suas trovas. Na edição de Manuel Bandeira, adicionou-se mais alguns sonetos (inclusive em inglês), o épico “Alegoria” e a espiritual “Comédia Angélica”, originalmente publicada em 1918.
Os sonetos de José Albano constituem-se em um verdadeiro depoimento de religiosidade e de culto ao Amor ideal. Distante dos padrões das poéticas de sua época, não é raro encontrar, na poesia de Albano, diálogos com Camões, Gregório de Matos e outros mestres da época. Pelo grau espiritual que muitos atingem, torna-se o poeta de “Comédia Angélica” um cantor próprio e um dos maiores sonetistas de nossa literatura. Eis o soneto de abertura da seleção do autor:
SONETO I (em Rimas)
Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.
Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.
Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noute e dia
E só com saudades me atormento;
Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.
Vê-se que as rimas de José Albano são simples, puras, em oposição aos “ouros-gramaticais” parnasianos e simbolistas. A sintaxe de sua poesia é translúcida, sem margens possíveis para as opalas dos signos. Um outro belo soneto selecionado por José Albano dialoga, principalmente na construção do verso (nem tanto nas imagens), com o famosíssimo “Amar é fogo que arde sem se ver...” de Camões. Vejamo-lo:
SONETO III (em Rimas)
Amar é desejar o sofrimento
E contentar-se só de ter sofrido,
Sem um suspiro vão, sem um gemido,
No mal mais doloroso e mais cruento.
É vagar desta vida tão isento,
É deste mundo enfim tão esquecido,
É pôr o seu cuidar num só sentido
E todo o seu sentir num só tormento.
É nascer qual humilde carpinteiro,
De rudes pescadores rodeado,
Caminhando ao suplício derradeiro.
É viver sem carinho nem agrado,
É ser enfim vendido por dinheiro
E entre ladrões morrer crucificado.
Em importante ensaio acerca da poesia espiritual brasileira Poesia Redentora, publicado em Dezembro de 1948, no Diário de Notícias do Rio de Janeiro), Tristão de Athayde, discorreu sobre a onda anti-positivista no verso nacional, tendo como base as figuras de Durval de Morais e José Albano, além de Alphonsus de Guimaraens, para ele, o maior espiritual de nossa poética. Sobre o cearense, diz-nos: “José Albano viveu fora do seu tempo, viveu contra o seu tempo, viveu torturado pelo seu tempo (…). E criou uma poesia intemporal, inespacial, realmente eterna em sua pureza inatingível, em que o verdadeiro clássico, não o neo-clássico, se perpetua em sua perenidade. Há um clássico eterno. Como há um romântico eterno.” E para citar um pontos “mais altos da nossa poesia religiosa”, cita este espetacular soneto:
SONETO V (em Rimas)
Senhor, assim pregado ao duro lenho,
Não negas a ninguém o teu socorro;
A mim, pois, que de mágoa vivo e morro,
Dá-me o brando sossego que não tenho.
Em te amar sempre ponho todo o empenho,
Vendo do puro sangue o frio jorro,
E com suspiros aos teus braços corro
E ao pé da santa cruz deitar-me venho.
Olha como foi triste o meu destino,
Sem esperanças quase e sem venturas,
Apenas com os sonhos que imagino.
Lembra-te destas dores tão escuras,
De que tu és o meu Pastor divino
E de que eu sou a ovelha que procuras.
Tal como os poetas portugueses, José Albano foi um grande cantor da saudade. No caso dele, porém, a saudade vem do “longo tempo mal vivido”, que deixa flagrante o seu fado: “O que procuro mais, menos alcanço/; o que mais imagino, menos vejo.” (no Soneto XI dos adicionados postumamente). Nessa tópica, é belo o décimo soneto incluído por Bandeira na obra completa de Albano:
SONETO X (em Rimas)
Trato só da perpétua saudade
Que mora neste peito desditoso,
Mas o queixume derramar não ouso
Com medo de que ao outros desagrade.
Se entanto de gemer me dissuade
O coração, tão cedo desgostoso,
Ordena e manda Amor que sem repouso
Tudo que sofro em canto se translade.
Oh! triste verso meu, pois vais partindo
Por este baixo e escuro mundo em que ando
Para espalhar o meu tormento infindo:
Ah! seja o teu destino manso e brando.
Porém, se te alguém ler acaso rindo,
Dize-lhe então que te escrevi chorando!
Embora não fosse um cantor da morte, distanciando-se de muitos poetas da sua geração, José Albano deixou um dos mais belos sonetos sobre o tema escritos na Belle Époque, incluídos postumamente por Manuel Bandeira. É uma perambulação pela tópica da mors-amor, tão cara aos Românticos e também aos simbolistas. Vejamo-lo:
SONETO I (em Rimas)
O cisne naquela hora extrema, quando
Vem caindo a perpétua noute escura,
Do espesso bosque a solidão procura,
Saudosissimamente suspirando.
E o novo som melodioso e brando,
Cheio só de desgosto e mágoa pura,
Os piedosos peitos sem ventura
Ao longe e ao perto vai dilacerando.
Assim também, sujeito à dura sorte,
Espalho o meu queixume no ambiente,
Para que me alivie e me conforte.
Sinto a mesma tristeza que a ave sente.
Pois Amor torna a vida numa morte,
Que me tortura e mata lentamente.
Tornaram-se célebres algumas trovas e oitavas de José Albano. De profunda melancolia e perscrutação, não obstante o curto espaço da forma e a já comentada simplicidade do verso, são reais joias de nossa literatura as seguintes trovas, compiladas pelo autor sob o título de:
CANTIGAS (em Rimas)
VIII
As estrelas no alto abrigo,
Mais alegres, fico a vê-las
Todas as vezes que digo
Que os teus olhos são estrelas.
X
A pensar me às vezes ponho,
E não posso compreender,
Porque sempre acaba o sonho
Quando começa o prazer.
XII
Há no coração sombrio
Um eco brando e sonoro
Que adormece quando rio
E desperta quando choro.
XIII
Disto enfim já não duvido,
No mundo o maior cuidado
Vem do bem que foi perdido
Antes de ser alcançado.
Muito conhecida também é essa oitava, sem dúvida a melhor que o autor escreveu:
Há no meu peito uma porta
A bater continuamente;
Dentro a esperança jaz morta
E o coração jaz doente.
Em toda parte onde eu ando,
Ouço este ruído infindo:
São as tristezas entrando
E as alegrias saindo.
Em seus poemas de maior extensão, José Albano perambulou por temas épicos e espirituais, além de ter se espelhado nas Lusíadas para a composição da sua “Alegoria”, quase beirando um plágio, embora genial. Em “Triunfo”, série de tercetos com fechamento num quarteto, chegou à clareza de sua ânsia diante do tempo em que vivia. Em um diálogo com a sua “Vênus serena e sorridente”, diante das Graças (Eufrosina, Talia, Aglalia) e de Diceia, Eunômia e Irene, suplica por salvação; atente-se também à evidência das peregrinações do poeta nos versos:
(…)
Em vão corro, em vão mudo de terreno,
Em vão busco fugir aos meus pesares.
Em toda parte enfim padeço e peno.
Porém, se mansamente me guiares
Hei de vencer o duro sofrimento.
Guia-me sempre e não me desampares.
José Albano foi um dos mais particulares poetas brasileiros. Não pelo fato de sua poesia trazer alguma novidade estética ou um ritmo esplêndido, renovado, mas sim pela sua aberta recusa às poéticas de seu tempo, tão cheias de seduções positivistas ou espiritualidades amplas; fosse possível, ele caminharia ao lado de Camões, jamais de Bilac. Muitas vezes, é bom que se diga, a má leitura de sua obra desaguou na classificação parnasiana de seu verso (ou, no caso da Comédia Angélica, de um simbolismo, o que é absurdo, já que não é uma peça de caráter simbólico, apesar de cenas bíblicas comum aos nefelibatas). José Albano foi um clássico e pertenceria, se vivesse na época do quinhentismo, aos quadros dos melhores da escola. Viveu no período do sincretismo, e, assim como muitos poetas da época, foi esmagado pela crença de “pré-modernismo” - esse não-período -, como se ele, que deitava os “olhos no passado” (como confessou em um soneto), fluísse, sob inércia, para o modernismo e as estéticas que se seguiram então.