carrossel
enjoam-me as voltas do carrossel da minha vida.
e eu, estátua comovida pela melodia de realejo
que incentiva o sobe e desce dos cavalos feios
voltas e voltas para o mesmo ponto no fim.
sou seu cavalo feio. preso a esta máquina de horas
sem partida ou chegada, no tilintar da doce agulha.
adoro o seu sorriso cálido a me alisar a crina plástica
enquanto cavalga o meu lombo nas voltas finitas.
ao seu querer faço meus trotes de alazão
e cedo me esquece, tão logo cessa o embalo
e, pálidos os lumes de seu enternecimento
vai para casa, volta outro dia, escolhe novo corcel.
canto de lamentação
vai! leva nestes passos duros
todos os corações que entreguei a ti:
jubilosos ou melancólicos,
palpáveis ou entornados.
vai! leva nesta mão no bolso as melodias ternas
que suspirei em teu pescoço,
o meu sexo
o meu zelo
minha graça! leva.
porque o violão vermelho
derrama na noite seus lamentos surdos.
e eu, violentada por teu desamor
em estilhas da história rasurada
que teus olhos deixaram de ler
enquanto em minha boca escarrada
o dia desnudo e indesejado cresce lento,
amortecendo os devaneios deste céu de urano
como anjos a despencarem
de meus seios secos.
vai.
confissão de pulso
preciso transfundir meus zelos
pela inocente paixão dos ouvidos seus
em pouso macio sobre o pranto
a fim de inocentar-me – apelo.
já não sou ave pulsante
e o voo de minhas emoções
estampa a sua retina torpe
implora e eu, menestrel, findo.
preciso recostar as ideias
no fundo deste peito errante
que tolo e vivo pulsa pelos versos
a esgotar-se em sopro de noite quente.
pois surgi e morri tantas vezes
que a vida é consumo austero
sou sementeira fracassada agora
e o que me salva são seus dedos.
deleite
subiu as escadas.
o chão roçado pelo tempo
a tilintar seus saltos e
suar a alma da nudez
de seus desejos.
parou diante da porta
lambeu a luz que saltava da fresta
e forçou o desejo do convite:
um espiar truncado,
o coração rendido.
entrou.
era um gato de casa.
foto: Christina Nelson
* * *
Mariela Mei nasceu em Orlândia, interior de São Paulo. Atualmente reside em Campinas/SP. É poeta e escritora, autora dos livros Bolas de Gude (Ed. Multifoco, 2011) e Fluxo-verso (Ed. Oitava Rima, 2014). Mantém o blogue graça/desgraça; teve textos publicados na revista literária Germina, no site do Projeto Releituras, no jornal curitibano Relevo e na publicação portuguesa DiVersos – Poesia e Tradução. É colunista do portal Página Cultural de Uberlândia, da revista literária Letras et Cetera, do site Mundo Mundano e do blog Poema Curta-Metragem, entre outros.
Leia mais poemas da autora aqui