Ilustração: Bassam Allam
LABIRINTITE
Entre as mulheres não, mas entre eles, os amigos, as formalidades foram dispensadas, é por isso que ele não anunciou a visita que aconteceu duas horas da manhã, depois de uma briga com a mulher. Bateu uma vez, duas, três, embora existam hotéis para todos os bolsos e o seu bolso pudesse dispor de meios para pagar as diárias quantas fossem cobradas durante o tempo que durasse o desentendimento conjugal.
Não era só guarida – esclareceu naquela ocasião, desculpando-se e justificando sua intromissão na vida dos outros, o incômodo que provocava em hora tão imprópria – mas precisava conversar, botar pra fora o nó na garganta daquele casamento, meu Deus, que se arrastava por mais tempo do que seria decoroso se arrastar. Ninguém estava incomodado e ele fez muito bem em acordá-los que amigos são pra isso mesmo. A mulher estava de camisola, e não havia mal nisso que de pudores vivem aqueles que imaginam nos outros seus piores vícios, e mais do que o marido, aparentemente cansado de um dia inteiro de trabalho, ela parecia sensibilizada com a situação do outro. Quando o marido voltou a dormir, ficou com o amigo dele até às quatro horas – com a camisola nem sempre escondendo o que deveria esconder –, ouvindo-lhe as lamúrias e o modo como se culpava.
De modo que não fazia cerimônias, nem de noite e muito menos de dia. Por isso nós o vemos abrir o portão sem embaraço: é uma tarde de sábado, e ele pensou em passar ali, bater um papo. Mas ninguém estava em casa, ele entrou depois de ser atendido pela empregada, que o mandou entrar e ficar à vontade, pois é quase hora da patroa. E ele, não vem? Não, disse a moça, parece que viajou a negócios.
Ela demora. Ele se levanta e se serve de uma bebida. O amigo guarda as bebidas numa porta de armário. Por trás das garrafas, descobre o livro que emprestara há meses e do qual não ouvira mais notícias. Resolve levar o livro, nada o impede. Afinal, não é ilícito o que faz, não se pode roubar o que já nos pertence. Acha engraçado, faria aquilo por farra, depois ririam juntos e fosse este o caso devolveria o livro, que livros são feitos para emprestar.
A empregada aparece de novo. Tem algo a comunicar e segura no avental antes de dizer que a patroa ligou e manda informar que alguma coisa lhe atrapalhou os planos e por isso não retorna pra casa antes do final da tarde, de modo que esperá-la não faz sentido, porque ainda não passa das quatorze horas. A última frase a empregada não disse, mas ele adivinhou. Está com o livro debaixo do braço quando se despede da moça que nem dá pelo furto.
Está casado faz uma década, e as coisas andaram se arrastando ao ponto de pensar em divórcio, mas não faz o tipo que toma decisões, é por isso que naqueles dias de inferno compartilhado fica torcendo que a outra tome a decisão que libertaria a ambos daquela agonia.
Gosta do amigo, a quem conhece desde os tempos de colégio. Suas vidas caminharam paralelas, apesar de viagens – do outro –, uma interrupção aqui ou acolá, a promoção, o cargo etc. Também acabou amigo da mulher do amigo, aliás, sua esposa também, apesar desta considerar aquela uma caipira simplesinha demais para o marido sofisticado. Jantam juntos de vez em quando – é bem verdade que é sempre ele quem convida e insiste –. No último encontro, sugeriu filé a quatro queijos e vinho argentino. Todos concordaram animados, ele mais que os outros, tanto que no final insistiu em pagar a conta, apesar dos sucessivos beliscões que sua mulher lhe aplicada debaixo da mesa.
Caminha na calçada. A tarde não faz calor, de algum lugar sopra uma brisa, talvez de chuva ou talvez só uma brisa. Ele resolve caminhar e por um instante esquece o livro debaixo do braço. Sente-se bem, por isso passou na casa do amigo, que nem sempre são as dificuldades de existir que o levam ali, queria dizer que não houve mais desentendimentos com a mulher, não como antes, ela tem sido tolerante com suas falhas incorrigíveis de homem não pragmático. Ele vem caminhando pela rua e de repente sente um arroubo de felicidade, coisa besta, pensa e deixa deslizar na face um riso que chama a atenção de uma senhora que passa gorda, trôpega e com todos os motivos para desconfiar que fosse com ela aquele risinho, de mofa, troça. Se ele pudesse adivinhar os sentimentos daquela senhora seria capaz de pedir perdão pelo que não fez, tal o estado de espírito, uma raridade, aliás, que há tempos o incomoda a dificuldade de existir dentro do casamento de uma década, cento e vinte meses que vertidos em dias, horas e minutos teremos o equivalente a uma eternidade.
– Dizem que no inferno um minuto dura uma eternidade.
– Você acredita no inferno?
– Tenho todos os motivos.
– Não diga isso, não pode ser tão ruim.
– O inferno?
Eles riram porque rir das misérias nossas e alheias é o que fazemos.
– Vou falar com ela, disse o amigo, não faz sentido tanta cobrança, tanta queixa.
Faz três semanas, aquela conversa, durante uma cerveja que engoliram de pé, o outro se desculpando da pressa.
Não vai para casa, ainda é cedo, resolve se demorar pela rua, talvez tomar alguma coisa, que naquele bairro estava assim de bares e cafés e mais lugares aprazíveis onde um homem pode sentar e ali se demorar provando uma bebida, café ou vinho, tanto faz.
A menina que serve o café pergunta o que ele está lendo, diz que também gosta de ler.
Ele abre o livro, o papel bem dobrado marca uma página e nem é a metade, o outro desistiu antes de percorrer um terço do livro. Tem alguma coisa escrita, a marca aparece no papel quase transparente. Talvez um comentário. Uma impressão de leitura. Quando ele desdobrou o papel o fez desinteressadamente. Se mais tarde parou pra pensar no que fazia – desde o furto – não saberia responder. Culparia a brisa, talvez, ou aquele estado besta de espírito. A letra é inconfundível, do amigo. Ele a reconhece, aliás, bonita, minimalista. Parece um recado que a gente anota para não esquecer. Lê sem entender nada na primeira vez e na segunda vez também, as letras se confundem enquanto ele sofre os efeitos da labirintite. Precisa largar o papel, levantar a cabeça e se concentrar em alguma coisa lá na frente, talvez um poste, uma coisa fixa no chão. A garçonete se aproxima, pergunta se está tudo bem, ele diz que sim e pede água, que ela não demora a trazer. Toma um gole e se sente curado da vertigem. Isso acontece de vez em quando, às vezes quando se levanta de maneira abrupta ou quando fixa os olhos num ponto que bruxuleia. Os médicos disseram que é labirintite.
Olha de novo o papel, e quando relê a frase uma vez mais ainda o faz sem entender:
“O casamento ruim não é motivo para se apunhalar um amigo”
Não há um ponto, o manuscrito acaba assim, interrompido e permanece incompleto, dobrado, protegido dentro das páginas do livro, seu livro. Não sabe quando foi escrito, talvez na mesma época do empréstimo, três meses atrás, talvez quatro, não tem certeza, só sabe que o livro lhe pertence, como agora aquela frase, a ele endereçada. A frase que o amigo não teve coragem de dizer na sua cara, a suspeita de traição, numa letra minimalista, ele a encontraria dobrada, como uma carta, dentro de um envelope.
Levanta-se e deixa o café como a menina o trouxe. Agora nós o vemos andar pela rua, um passo atrás do outro, cauteloso, um, dois, é assim que se faz, mais de uma vez sua mãe quem disse: quando a crise atacar na rua, esqueça o desespero, é pior, acredite, dê um passo depois do outro e procure a calçada, que é segura, melhor esbarrar na gente do em carro moto bicicleta e devagar é que se chega, de outro modo não dá não tem jeito. Vê seu pai como acabou debaixo do caminhão? Uma estupidez, meu Deus, uma estupidez morrer assim, com o mundo dançando fora de nosso ritmo.
Quando deu por si estava voltando pra casa. Sua mulher não está. Ela nunca está aos sábados à tarde, dedica esse tempo ao cabeleireiro, manicure, pedicuro ou passeia no shopping em busca de produtos de beleza que prometam o milagre do rejuvenescimento. Aliás, adora cremes, gasta uma fortuna com eles, que são muitos, para todas as regiões do corpo e de todas as cores e cheiros. É preciso, ela diz, depois dos trinta a mulher precisa se cuidar. Tem trinta e seis, mas ninguém lhe dá mais que vinte e oito talvez vinte e nove.
Ele está com fome, lembra-se de que não almoçou. Sempre que a empregada não vem, tem de comer comida requentada no micro-ondas e não gosta, não tem jeito, não gosta. Pronto. Isso já foi motivo de brigas. A mulher sempre está disposta a lhe atirar na cara que não é sua empregada. Não é isso, defende-se, apenas não gosto. Pronto. De vez em quando, aos sábados, as brigas são responsáveis por fazê-la sair mais cedo para sua incursão no shopping e nesses dias chega tarde da noite, com raiva dele, do marido que implica com tudo, que não a deixa em paz com sua mania de não comer comida requentada em micro-ondas. Ele se sente culpado, não pode evitar, e espera pela esposa, que não chega. Fica zanzando pela casa, pra lá e pra cá, ligando para o celular dela que não para de repetir o mesmo sinal: “sua mensagem está sendo encaminhada para a...”, Foda-se a caixa de mensagem! Vai ficar acordado e esperar, pedir desculpa, dizer que é um chato, que não sabe como ela o aguenta. Nessas noites a mulher o olha de um jeito, e há sempre ternura em seus olhos, e ela sempre chora, não consegue evitar, e dorme abraçada ao marido como se fosse o filho que nunca teve.
De fato, está com fome. Abre a porta da geladeira e retira um prato com queijo, corta um pedaço e o coloca na boca, e morde o queijo duro gelado, sem gosto.
Senta-se. Liga a TV e fica passando de um canal fechado para outro. São muitos, um pior do que o outro que ele não gosta, a mulher tampouco, fã das novelas do canal aberto. Às vezes se pergunta por que fez a assinatura, sabe apenas que estava com o amigo; foram juntos, o outro precisava de uma desculpa, estava de quiquiqui com a moça da venda, ela loira e bonita e alta, muito alta, as pernas enormes de mulher que não combina com essa vida de vender pacotes de TV por assinatura. Meu amigo deseja fazer a assinatura, você se importa? Não, ela disse, E você, já tem? Sim, já tenho, ele é que não tem, é um pão-duro, e deu um tapa no ombro dele, um tapa amigável. Enquanto ele assinava o contrato o outro anotava num papel o telefone da loira de pernas enormes e sorriso de dentes alvos, muitos, mais do que seria possível caber numa boca.
Quando ela chega, são quase dez horas, ele ainda está diante da TV e continua mudando os canais. Ela pergunta se ele está com fome, ele responde que comeu um pedaço de queijo. Um pedaço de queijo não é refeição, ela rebate enquanto passa por ele, em direção ao banheiro, dentro de onde começa a gritar; tem essa mania de gritar, acha que todos sofrem de alguma dificuldade auditiva. Pergunta o que ele fez durante o dia, ele não responde, está longe, vendo sem ver os canais de TV que não gosta, sentindo um começo de dor de cabeça que lhe embaça as vistas e o força a olhar de lado, procurando um ponto fixo, alguma coisa cravada no chão, imóvel.
Nivaldo Tenório publicou A Grande Torre (2002) e Dias de febre na cabeça, pela u-Carbureto, com segunda edição pela Confraria do Vento, a ser lançada este ano.