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Carla Kinzo : 7 poemas do livro ' Cinematógrafo'

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                                          Imagem: Macela Falci


impossível 

como um inseto apaixonado
que se espatifa na janela
pra tocar uma única  
lâmpada
acesa

como um caçador que tenta
apanhar um beija-flor
em pleno voo
com uma
xícara

como quem se arrisca até o mercado
sob duas rodas
na avenida
só para ter
laranjas frescas
pro café

ele se larga
do parapeito
em chamas
tentando
se
salvar

se eu tivesse
mãos
pra lhe amparar
ou uma
palavra

se eu tivesse
ao menos
um chapéu 





adília

dobro muitas vezes um papel / preciso do mistério que se diz / nos vincos /
nas esquinas em que começo a ler / a palavra 'obra' / e de trás pra frente / descubro / o inesperado 'd' / que me volta / uma vez mais / à inescapável dobra










ali na palavra pensada
e não dita
onde o silêncio é mato  
e algumas pedras sem força
se gastam com o tempo
lá onde não estou
e não me esqueço
posso ser tudo
o vão anônimo antes do
verso
ou ele mesmo desgarrado
ponto de fuga do quadro
e seu reverso
e quase nada


  

gramática

a dicção lenta do poema
quer dizer
não sou eu
não somos nós
é uma palavra entre
é este sol poente
esta vírgula atroz





sendero

como se fosse uma sala ampla
que um caranguejo atravessasse
contra a sua natureza
de frente e não de lado
e nos tomasse pela mão com uma garra
e nos dissesse não tenho medo
não tenho mais
aprendi a me mover por espaços imensos
os corredores estreitos caminham para trás
sou de água doce mas desde 1973
aprendi a navegar no mar
de que me vale a água sem sal quando há luta
foi o sal que fechou minhas feridas a bala
os canhões rasgaram a cidade
(não assino mais jaiba
mesmo tendo neruda me escrito um poema
me chamem juán
apenas juán, sim)
por aqui há uma saída, vejam
para onde é preciso caminhar de frente
para onde é preciso caminhar para ver
nossa senda
o desvio
discreto como o andar de um crustáceo
preciso como quem se afunda na areia
antes da vinda da onda
ali juán nos diria, não
não tenham medo
também as feridas da terra são escondedouros
de onde escreveremos as palavras
talhadas por nossas garras
pelas unhas de nossas mãos


Santiago, maio de 2013




De tudo o que fica
são os dias vividos não no papel
não no verso
(no que poderia ter sido)
(no que não foi)

O que realmente fica é
este instante em que tomo o papel
pra descrever a silhueta
de um dos gatos na janela

a luz entrando
(esta luz, de agora)
feito um fio d’água se derramando
até a mesa em que você
se senta

e me olha

Entendo: é o momento de largar
o papel
(abandono a caneta)
e livro uma das mãos

pra segurar a sua e seguir
para o quarto
para a rua para
a vida, enfim
feita desta matéria hesitante

do lado de lá do fio de luz
do lado de cá
  




para ser lido em alta velocidade

como quem afugenta um mosquito insistente
porque sabe da reação do corpo à picada
como quem se lembra da panela esquecida no fogo
que pode estar consumindo a casa

como quem se dá conta
passou muito tempo e não alguns dias

como quem se assusta
porque viu seu assassino seu amante
ou alguém talvez esquecido

porque se passou muito tempo
como se fossem alguns dias

como quem vê alguém capaz de rebobinar
o tempo

como quem abana insetos mortais
ou feios demais

como quem sopra o que voa na direção dos olhos
ou como quem se estica
pra pegar um pássaro
raro
ou ainda como a criança que se estica
para pegar não um pássaro
raro
mas uma libélula
banal


como um tigre pronto pro salto
como o atleta pronto pro salto
como o suicida pronto

como o bailarino
na ponta de dois únicos dedos

pronto
para
o
salto

como o olhar de quem cai para o espaço
(o último)
como a lágrima presa numa linha do rosto
(a última)
como quem escreve a linha final

como quem se arrisca no asfalto
como quem apanha de um desconhecido
como quem apanha muito de quem se
conhece muito

como quem empurra da vida
quem não quer que entre nela

como quem puxa o ar
como quem se afoga com o ar
porque não há espaço
como quem pula para alcançar o ar preso
no teto

como quem sufoca moveu
bruscamente uma mão
para reter se não a vida
mas o instante ali na beira
da porta de saída





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