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3 contos de Priscila Lopes

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Notas sobre um escândalo que não aconteceu
 
1,
Durante o teu nome eu era calada. Quase sempre chuva, quase sempre. O vento que me desnuda numa esquina diz mais sobre mim do que eu já ousei me expor em palavras. Estou sentada. Um sol de outono meio que me aquece enquanto recordo. Volto ao que era. Amarelada. Recordo a face recobrada de falta juízo, falta de senso, falta. Saudade de si, de cantar lá, de falsetes. Estou como que esquecida, sentada. Pedras me fazem viver. Terra molhada me deixa sem sono. Estou no incômodo estado de ser.

2,
Enquanto chorava no box esfregando calcinha cheguei a algumas dessas conclusões óbvias a que se chega quando se está no banho. A primeira delas é a de que, no ritmo com que estamos consumindo os recursos naturais, eu devia chegar mais rápido a conclusões óbvias e assim passar menos tempo no chuveiro. Outra foi de que talvez o fato dos clichês sempre me perseguirem se deva justamente a outro fato, o de eu não gostar de clichês nem um pouco. E, por último, embora outras mini conclusões tenham ocorrido sem que eu me desse conta, concluí que eu definitivamente preciso me desencaixar desse padrão de relacionamento monogâmico herdado pela sociedade, que, como naquela parábola dos macacos e a escada que dá pra bananeira, nem sabe por que o repercute se não faz bem nem para ela mesma.

3,
Eu vou morrer. Corro ao espelho e apalpo a face estarrecida. Estou absurda e desmemoriada. Quase excitada, a Morte, me espreita. Investigativa, a Morte, me assedia. Sou vulnerável e atrevida. Pode ser que me ocorra ainda hoje – embora ache pouco provável, sempre acho pouco provável morrer no dia de hoje – e pode ser que seja amanhã, ou daqui a alguns anos, em 2027. De pensar Nela quase choro. Porque não fiz por merecê-La. Seja por bonificação ou vingança, a Morte não me convém.

4,
Sou eu minha única salvação. Eu me compreendo e tenho complacência. Estou me curando constantemente. Vivo a me sabotar, a me encruzilhar, a testar minha capacidade de abstração. Se me distraio, me firo. Se me interrogo, me choco. Tenho estado assim, chocada. Esperando-me nascer. O que será que me aguardo? Que espera absurda me concentra? Estou focada, mas minhas lentes embaçam. É que me dou conta de que não estou no centro. Sou periférica e inescrutável. Às vezes transbordo, mas quase sempre estou boiando.

5,
Entrei em tal sintonia comigo que estou me adivinhando as vontades; me fazendo favores e me retribuindo. Eu penso em uma música, e me canto. Lembro-me de um filme, e me assisto. Estou até disposta a me levar para passear; aos poucos me abrindo, me sentindo à vontade. Parece que já me nos conhecíamos há anos, de outras vidas, só esperando. Noites dessas, eu estava em casa, era verão e o movimento na rua convidava, mas eu comigo esbarrava pelos cômodos, quase confessando que na verdade não me importavam as luzes lá fora; eu toparia ficar em casa aquela noite, desde que me fizesse companhia. E não foi preciso dizer nada.


Uns sorrisos, e depois


Então ela lhe deu o primeiro sorriso. Estavam a alguma distância, e podiam comparar-se a outras pessoas. Não que procurassem nelas uma coisa que não tivessem - para invejar - ou o contrário, lhes causar qualquer tipo de ciúmes. Era apenas questão de reconhecer diferenças e semelhanças, gostar da vida assim, sem retrucar. Todos podiam ser. Era branco, e às vezes mudava de cor. Como bancos de praça. Como decks sobre o mar. Poltronas acenando na varanda de uma casa cor de giz azul.  Parecia até um céu que lhes vestia. E ela lhe deu o segundo sorriso. Mais pontual, talvez dizendo. Não pedia nada ainda. Era o sorriso informante que vinha de algum vilarejo longínquo e pouco comentado, onde habitava a vida sem fazer alarde. Havia mais proximidade, e olhando em volta, podia-se notar um vaso de sete ervas encostado à porta da casa amarela; de resto, era só pensamento. Mas como um eco, aquilo se chegou assim sem encontrar nada, e aos poucos se foi. E ela lhe deu um terceiro sorriso. Cheio de possibilidades, lábios frágeis pedindo. Como um beija-flor que aparece à janela e para de súbito em frente à mulher que prepara o almoço. Sabia ela. Sempre soube, ali; agora um pouco mais. Almofadas forradas de um tecido verde cítrico e nuvens espalhadas pelo céu vão avisando, e ela aguarda. E depois, sobravam horas na tarde e dias no ano. Mas sempre havia aquele medo de acabar no fim - relógios de parede contemplam casas de família, até que morrem. E ela lhe deu um outro sorriso, e outro e outro e outro; e, desesperados, os sorrisos sobrepostos começaram a dançar, e a se propagar sem bloqueios até alcançar a multidão que até então apenas assistia, e todos começaram também a sorrir; um sorriso frenético que era riso só. E não explicava nem trazia nada. Então ela se pôs a chorar que não teve mais volta.   




Caixa de lembranças que eu não tive

Guardei um monte de coisa pra ver contigo, Meu Amor, olha aqui, você tem que ver, tem que se sentar aqui pra ver isso que eu achei nessas revistas de viagem, que eu guardei pra ver com o amor da minha vida quando aparecesse (sim, eu sei que já te falei do primeiro, mas me refiro a ele como meu grande amor, nunca falei que tivesse sido o amor da minha vida, que seria até muita hipocrisia da minha parte, não só por estar agora contigo, mas por ter estado com muitos outros depois daquele e antes de, enfim), eu guardei aqui, oh, essa CAIXA de lembranças que não tive; taquí escrito do lado DE fora, olha, prestatenção, tô te mostrando: LEMBRANÇAS QUE EU NÃO TIVE. Esperava encontrar com quem compartilhar. E eu até comecei esse projeto (que isso aqui é mais que um sonho, é um projeto de vida, tu tá me entendendo?) duas relações atrás eu iniciei esse projeto de vida, mas não deu certo porque eu mal planejei a relação. As duas coisas tem que andar juntas, né. Aí depois eu tive outro namorico, mas tinha uma vida sexual tão intensa que eu abandonei a poesia da vida (a poesia era eu gozando noite adentro! ßisto aqui eu pensei, não disse alto). E teve aquela minha namorada da faculdade, tu te lembras? Eu te apresentei! a gente se encontrou por acaso aquela vez que te convenci a entrar num pubzinho num rompante saudosista meu; a gente tava passando em frente, quase bêbados, que decidimos não pegar táxi e vínhamos andando de mãos dadas, daí entramos no tal pubzinho sem que eu te avisasse, nem você questionasse, que era GLS (hoje GLBTS, não: LGBT). A gente entrou e eu dei de cara com a Érica. Engraçado, agora me veio o nome assim, com os cabelos bem cacheados dela, aqueles cabelos bem loiros, os olhos castanhos acobreados, tu te lembras? Chegou a reparar? E ela sempre usou aqueles decotes que deixam as sardas do colo aparecendo, eu achava tão lindo isso. (AMOR, TU TÁ ME OUVINDO?) Engraçado, tô aqui pensando agora, eu não sei por que terminei com a Érica. Acho que só porque era mulher. Que tola eu naquela época, ã-ã! Tu acreditas? Tô agora aqui pensando, nem sei por que me lembrei dela, deve tá pensando em mim também... amada...! Ela teria adorado essa caixa de lembranças; era tão romântica. Queriiiida... ela iria amar se eu telefonasse e dissesse que, e dissesse apenas, mostrasse a caixa. Tenho certeza de que ela iria querer fazer disso um roteiro, um mochilão de um ano, assim, viajando, anotando, fotografando, sabe? Ela gosta muito disso. Nossa, a Érica. Amor, você se importaria d’eu telefonar pra ela? Assim, só pra saber o que anda fazendo, se está namorando, casada; também não vou convidá-la pra vir aqui do nada, nem acho bom que venha aqui, porque, ah, sei lá, um constrangimento misturar passado e presente, e não teria privacidade pra deixa-la abrir a caixa, se emocionar; ela é muito emocionada com as coisas, com certeza vai chorar, me abraçar sem palavras, e, ai, amor, desculpa mas, eu preciso sair eu preciso sentir eu preciso telefonar para a Érica e dizer que, e dizer.

Ilustrações: (1) Colagem com monotipias e xilo - Ramon Rodrigues
                  (2) Xilo sobre panfletos - Ramon Rodrigues




Priscila Lopes (Florianópolis/SC) nasceu em 1983. Formou-se em Relações Internacionais, especializou-se em Comércio Exterior, atua profissionalmente como Analista de Projetos & Propostas em TI, e paralelamente a tudo isso, desde criança se dedica à literatura. Destaque em concursos e seletivas literárias, já foi contemplada com bolsa da Biblioteca Nacional e selecionada para publicação através do FUNCULTURAL/SC. É autora de “Uns traços, todos imponderáveis” (Editora da Casa, 2010) e “O Livro Espantado” (Editora Patuá, 2014). Coorganizadora da coletânea nacional “XXI Poetas de Hoje em Dia(nte)”, publicada pela editora Letras Contemporâneas. Integrante da antologia “Cantares Catarinas - A Nova Poesia Catarinense” (2010), editora Todaletra.
Home:www.priscilalopes.com
FanPage:fb.com/priscilal0pes



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