Ilustração: Vampire's Wine, deviantART
FUTURO DO PRETÉRITO
O band-aid no calcanhar
Mal se equilibra
Entre a pele de todo dia
E o sapato de festa
Soluços
Entre uns tantos copos d`água
Assimétrico
O sorriso aos poucos retorcido
No outro canto da boca
Incompatível
O que era para ter sido
E foi
Maquiagem escorrida no canto dos olhos
Limite do olhar
Encanto imperfeito
E na fotografia do momento
O futuro
Em pretérito guardado
DR
Prognósticos
Vestiram a nudez.
Os urubus perderam a cor
No argumento
(São os fantasmas da carniça).
As boas maneiras ficaram de gorjeta
Em um bar da esquina
Dos confins.
Atenuantes respeitaram o aviso de
Do not disturb
Enquanto os justos tomavam remédios para dormir.
A manhã empacotou as roupas íntimas
Da discórdia
Em malas que prendiam a porta
Do elevador.
NOVO TESTAMENTO
Não, não quero descer
Nem olhei tudo o que me foge do olhar
Quero ver a sombra das asas
Sumindo no chão
Ser chulo e sagrado
Caminhar em silêncio
Em um clipe do Joy Division ou
Cindido
Permanecer apenas
Abrir portas para desconhecidos
Coçar-me em pulgueiros
Voltar simplesmente
Comprar versões
E revendê-las no mercado livre
Lucrando algum
Pedir e dar trégua
Acordar três dias depois do boa-noite
Já cicatrizado
Com a sensatez em brasa
Catalogando arrependimentos vívidos
E lívidas lembranças.
SOLIDÃO
O boneco de posto
Ri de tudo
Para o nada.
Da velhinha que distribui folhetos
De apartamentos há muito vendidos
Os jornais de ontem
– afundamentos prescritos
que repetem o amanhã –
Radares desativados
Extratos da conta bancária
Que a família do morto não se deu ao trabalho de
Fechar
Policiais aposentados que
Teimam em andar de uniforme
O mendigo que perdeu com seu último dente também o juízo
Orfanatos penhorados por velhas crianças
Roleta russa sem bala
Casa de janelas cimentadas
Que ninguém quer comprar
Porque alguém se enforcou ali
E o corpo só foi descoberto
– lar putrefeito –
Três dias depois
Não por um parente ou amigo ou mesmo vizinho
Mas pelo funcionário da TV a cabo
Que havia marcado a troca do sistema
Por um de terceira geração.
CERIMÔNIAS
Os jasmins ainda frescos
Entre mãos que apodrecem
Molduras oxidadas
Aridez do que foi
Leito
Estacas da porteira
Fincadas como cruz num velho
Peito
Na condolência do coveiro
– o último dos santos –
O batismo
Do que ficou entre os sulcos
Latente
Remendo
De um vínculo quase
Perfeito.
Poemas dePow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014).
Autor do livro Pow-emas e Outros Jabs Líricos (Pátua, 2014), Edson Valente é jornalista e também autor do livro de contos Refluxos (Ateliê Editorial, 2010). Cinéfilo admirador de Aleksandr Sokurov e Wong Kar-wai, corinthiano, não vive sem canções desesperadas de bandas como Dirty Three, Low, Tindersticks, Red House Painters, Antony and The Johnsons e The Jesus and Mary Chain. Nunca assistiu a uma luta de boxe, mas suporta ver sangue.