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À Sombra das moças em flor, ou uma visão poética do mundo - Jediel Gonçalves

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Alguns proustianos – falo dos egoístas e dos mais ciumentos que fazem da Busca uma “verdadeira religião”, caindo no mais abominável proustiano dos pecados, a idolatria – gostam de sair por aí, atraindo, como numa missão jesuítica, mais tribos de pesquisadores para seu aprisco. Porém, por causa de seu proselitismo, desconsideram o conceito proustiano de “verdade”. A verdade está num conjunto estilístico-literário-filosófico que ronda o discurso literário do escritor. Há determinantemente na “voz da obra” (na voz que o leitor incorporou para si em sua leitura) uma palavra ainda não ouvida, que se expõe aos ouvidos de um observador, interessado em compreender os fios que se vêm por debaixo da fabricação do tecido-texto. Tal “verdade” reside nos compostos de nossos sonhos e é feita da mesma matéria que eles; a verdade está onde a vida se assemelha a um sonho e o sonho, à vida. A leitura de um livro pode ser uma verdade, no conceito de Proust. De um lado, ela nos enleva, somos tomados pela sensação de caminharmos através das clareiras de uma floresta encantada. Por outro lado, a “verdade” pode ser uma espécie de viagem, de incursão interior, que demoramos como que uma eternidade para nos livrar e conseguirmos despertar dela.
Se levarmos em conta o pensamento de Roland Barthes, não cabe ao crítico descobrir o mistério desta “verdade”, mas encobri-lo ainda mais com a linguagem. O regime dessa verdade é diferente do racionalismo clássico: o regime proustiano de verdade(s) é sobressalto, intermitente.
Para Proust, o material de que é elaborada a verdade confecciona também os sonhos que rompem os limites entre o ser desperto e aquele que ainda dorme, entre o que é corpóreo e o que é simbólico.
A “verdade” é da Arte, pois nela encontramos os símbolos que sobem os rios na contracorrente e que nos ajudam a subir os degraus do cais-calvário. Não adianta ficar parado no ancoradouro para receber a verdade-iluminada, inspirada e sígnica. Deve-se dialogar com a memória involuntária, para saber até que ponto a marca indelével dos sonhos e dos pesadelos nos castiga, para saber até onde a imaginação criadora – urdida da memória – nos conduz.
A “verdade” é, para Proust, a união de muitas identidades, de muitas épocas, que se comunicam até se fundirem. Metaforicamente, essa “verdade” reflete nossas vidas, fala com elas, deixando tudo transcorrer simultaneamente em lugares e tempos diferentes. É uma verdade sem excessos, mas vívida de essências. É uma verdade que se transveste: tem seus criados, visitantes particulares, etc.; não precisa de amigos ou inimigos, pois tem os avatares deles; é andrógena, pois, em Proust, um homem pode parecer, ao cabo de um instante, sob o aspecto de uma mulher. É uma verdade que produz e possui seus próprios apetrechos, somos despertados por ela quando recebemos um toque perfeitamente audível: “Estamos sendo ridículos diante dos convidados deste jantar. É melhor pararmos por aqui.”
Enfim, se há realmente “ensinamento” sobre a verdade em Proust, devia ser este: de tanto lidar com as sombras, aprende-se discernir consistência e consciência por trás das mesmas.

O herói-narrador proustiano anseia por Balbec e reflete sobre a natureza da viagem. Questiona também o que diferencia as viagens imaginárias das excursões reais. Segundo ele, quando viajamos em nossa imaginação, somos milagrosamente transportados “de onde vivemos para o centro de um lugar desejado.”

“Infelizmente, esses lugares maravilhosos de onde a gente parte para um destino longínquo, são igualmente lugares trágicos, pois, se ali se cumpre o milagre em virtude do qual os lugares que ainda não tinham existência senão em nosso pensamento passarão a ser aqueles em que iremos viver, por essa mesma razão é necessário renunciar, ao deixar a sala de espera, a reencontrar logo o quarto familiar onde estávamos há pouco. É preciso perder toda a esperança de voltar a dormir em casa, uma vez que decidimos penetrar no antro emprestado por onde se tem acesso ao mistério, num desses grandes estúdios envidraçados, como o de Saint-Lazare, onde eu fui procurar o trem para Balbec, e que estendia acima da cidade desventurada um desses imensos céus crús e cheios de amontoadas ameaças de drama, semelhantes a certos céus, de uma modernidade quase parisiense, de Mantegna ou de Veronese, e sob os quais só se podia cumprir algum ato solene e terrível como uma partida em trem de ferro ou a ereção da Cruz.”

São inúmeros os caminhos para que o leitor produza a “busca” em si. Na maior parte das vezes, a “busca” é algo que se faz em si, para si. Ela resulta no embate com mais descaminhos (e com mais buscas) marcados por uma mobilidade: com início e com fim de novos percursos que aproximam o leitor de uma consciência estética.
É por meio da mobilidade que se tem em cada palavra, em cada cadência verbal, o fundamento do texto proustiano. Nessa cadência poético-verbal, a literatura proustiana consegue atingir o imaginário, o simbólico, a dimensão virtual, enfim, o natural na profundeza de criação.
Através da matéria palavra, Proust parece exercitar no processo dos sonhos o inescrutável da linguagem obscura. O que as coisas e as pessoas emitem não se realiza. É o herói quem deve decifrar os indícios. E para comprender, lhe será necessário despregar-se da alma humana, desligar-se do corpo, para transformar-se em fenômeno mágico e completo. Recuperar a “palavra”, a vivência dos signos vital e artístico que trazem a penumbra do tempo e do espaço na caixinha da memória, enfim, recuperar a literatura, significa experimentar uma espécie de criação dramática de todos os gêneros literários, postos uns ao lado dos outros.
Poucos escritores conseguiram penetrar na esfera da obra de arte: Proust criou uma língua diferente em sua própria gramática, em sua inteireza senhorial e em sua lógica e poder. A língua proustiana é posta a serviços dos signos da arte, “signo imaterial”, segundo Deleuze, que é posto, por sua vez, numa suspensão dialética. Em função da vida, da duração e dos sentidos das palavras, estão os projetos de destruição dos pilares do real e da apropriação reformuladora do real em outra coisa. Esta é a visão poética do mundo para Proust.
  
“À Sombra das moças em flor”

Atrevidas moças caminham ao longo da praia normanda de Balbec. Uma empurra sua bicicleta, as outras duas carregam um saco de golfe. A cena, contida em frases híbridas que misturam colorido e musicalidade, transforma-se – com uma leve “pincelada” das palavras – num quadro impressionista, cujos elementos mal conseguimos distinguir.
Tudo está no espírito. O reflexo que o espírito da nossa leitura projetou nessas coisas as interpreta como a natureza que possui um pensamento. As coisas e as imagens das coisas se avizinham das ideias. Porque, sem dúvida, os Nomes são desenhistas fantasiosos que nos traem numa espécie de estupor; representam lugares e pessoas tão pouco semelhantes com o mundo visível ou com os sentidos dados pela imaginação.
Este episódio é notável para a importância que Proust dá à descrição. Aqui, o leitor é espectador da cena, pois ele adentra o “quadro” descrito pelo narrador. As decrições da clareza e do brilho do céu e da paisagem de fundo e, inclusive, a dimensão e o caráter poético da descrição dos corpos das moças evocam um retrato. Numa primeira leitura, cada nota de luz é absorvida pelas personagens femininas. Elas emitem luz! As meninas são, na verdade, desenhos aproximativos que se podem obter da realidade, porém são também diferentes do mundo visto do ponto de vista imaginado.
A vegetação é reproduzida para que o observador-leitor tenha a impressão de sentir vibrar cada ponto de luz na “atmosfera” da cena descrita. Pelo texto, há uma sensação de realidade que se vive quando se contempla uma tela impressionista.

“(...) No meio de todas aquelas pessoas, algumas das quais estavam pensando em algo mas traíam então a mobilidade do espírito pelos gestos bruscos, pelos olhares que divagavam, tudo tão desarmonioso quanto à circunspecta hesitação de seus vizinhos, as mocinhas que eu vira, com o domínio dos movimentos que provém da perfeita flexibilidade do corpo e um sincero desprezo pelo resto da humanidade, vinham vindo em linha reta, sem hesitação nem rigidez, executando exatamente os movimentos desejados, numa total independência de cada um dos membros em relação aos outros, conservando a maior parte do corpo aquela habilidade tão notável nas boas valsistas.”


“(...) Já não estavam muito longe de mim. Embora cada qual fosse de tipo inteiramente diverso das outras, todas eram belas; para falar a verdade, eu as via há tão pouco tempo e sem ousar encará-las fixamente, que ainda não conseguira individualizar nenhuma delas (...)”

“A não ser uma, cujo nariz reto e pele morena faziam contraste com as outras, como, num quadro da Renascença, um rei Mago de tipo árabe, só me eram conhecidas, esta pelos olhos duros, atrevidos e risonhos; outra pelas faces onde o tom de rosa ostentava esse marrom acobreado que dá idéia de gerânio; e mesmo esses traços eu não tinha ainda indissoluvelmente nenhum deles antes a uma que a outra menina qualquer: quando (conforme a ordem em que se desenrolava aquele conjunto, maravilhoso porque ali avizinhavam os mais diversos aspectos, e todas as gamas de cores – elas se aproximavam umas das outras, mas disposto de modo confuso como uma mulher em que eu não pudesse reconhecer e isolar as frases no momento de sua imagem, percebidas mas esquecidas logo após) via emergir um oval branco, negros, olhos verdes, não sabia se eram os mesmos que me haviam encantado a pouco, não tinha condições de ligá-los a esta ou aquela moça que eu tivesse esperado das demais, e reconhecido. E essa ausência, na minha visão, dos limites que em breve estabeleceria entre elas, propagava através do seu grupo uma flutuação harmoniosa, a contínua translação de uma beleza fluída, coletiva e móvel.”

Esta é a primeira visão que o narrador tem de Albertine, por quem se apaixona logo depois. Alguns especialistas afirmam que por detrás da famosa Albertina, vive a face escondida de Alfred Agostinelli, jovem aviador que Proust conheceu, em fevereiro de 1913, numa viagem à Cabourg, na Baixa-Normandia. A relação com Agostinelli se intensifica e Proust contrata o rapaz para ser seu secretário e motorista particular. O rapaz aceita a proposta, mas, no outono de 1913, não suportando mais as crises de ciúmes de Marcel, Agostinelli deixa definitivamente o escritor, antes de falecer, em maio de 1914, num acidente trágico quando pilotava seu avião durante um treinamento. Comovido com a morte do jovem, Proust escreve dois romances inspirados nessa paixão: A Prisioneira e A Fugitiva, cuja estrutura e enredo Proust já relativamente se anunciara em À Sombra das moças em flor.
No entanto, a Primeira Guerra atrapalhou a publicação desse segundo volume. Anterior ao Tempo redescoberto, esta “segunda parte” – anunciada desde a publicação de No Caminho de Swann, em 1913 – deveria chamar-se O Caminho de Guermantes. Bastante debilitado por causa da doença asmática, Proust aproveita “o tempo benéfico da guerra” para trabalhar sua escritura. Se, nessa época, assistimos a um Proust frequentador menos assíduo dos famosos salões, é porque ele buscava “se fechar” para o mundo a fim de escrever e dedicar-se aos cadernos de rascunhos e paperoles, dos quais nascerão quatro novos volumes da Busca.

O narrador está nitidamente apaixonado por Gilberte, filha de Charles Swann e Odette. Ele aproveita a íntima relação entre sua família e a dela para adentrar o mundo da menina. Um dia, enquanto brincavam em seu quarto, sentindo a necessidade de tomar um pouco ar, os dois inclinam-se junto à janela.

“Nesses momentos, as tranças de Gilberte roçavam meu rosto. Parecia a finura de sua grama a um tempo natural e sobrenatural; pela força de folhagens artísticas, uma obra única, para a qual teriam utilizado a própria relva. A um fragmento mesmo ínfimo delas, que celeste herbário eu não teria em moldura? Porém, não esperando obter um pedaço de verdade daquelas ao menos conseguisse uma fotografia delas, quanto mais preciosa que as florzinhas desenhadas pelo Da Vinci!”

À Sombra das moças em floré um romance composto de duas partes: “À cerca da senhora Swann” e “Nomes de países: o país”, fazendo ecoar a ordem do arranjo estabelecida no primeiro romance No Caminho de Swann. Na primeira parte, o narrador conta os avanços do amor por Gilberte. Da mesma ternura, delicadeza e respeito que Swann observava no clã dos Verdurin (porque, para ele, este grupo transmitia a beleza e a perfeição de Odette de Crécy), o herói proustiano enche de qualidades os pais da moça que ele ama. No segundo capítulo, o herói atinge “uma quase completa indiferença por Gilberte”, enquanto conhece Albertine durante as férias que passava em companhia de sua avó na cidade marítima de Balbec.
Nos demais romances, o herói tem por companhia a presença do jovem aristocrata Robert de Saint-Loup. Porém, no início desse romance, o personagem em questão rejeita friamente o vínculo de amizade com o herói-narrador. Saint-Loup “funciona” numa estranha lógica: não se submete ao sofrimento amoroso, mas também não submete os outros ao mesmo tipo de sofrimento. Isso faz com que o narrador tire uma lição – Saint-Loup não pode ensinar verdade alguma, pois, no conceito proustiano, o pensamento só se move efetivamente se for motivado pela dor. Sem sofrimento não há pensamento. “Proust não crê que o homem, nem mesmo um espírito supostamente puro, possua um desejo natural pelo verdadeiro, uma sede pela verdade (...) Quem é que busca a verdade? É o ciumento que é pressionado pelas mentiras do amante”, diz Gilles Deleuze em Proust e os signos.
Antes de tornar-se escritor, o herói-narrador precisa cumprir um “itinerário” na decifração de signos. Dentre esses signos, o mais violento, o mais revigorante, o mais completo, é o signo da arte, que, para Deleuze, funciona como uma espécie de “terminal dos signos”.
Música, pintura e literatura pontuam essa travessia. No início do romance, ele realiza o sonho de ir assistir à interpretação teatral da famosa atriz Berma. Ela o decepciona: “(...) E, devido a isso, as obras verdadeiramente belas, se sinceramente escutadas, são as que mais devem nos decepcionar, porque, na coleção das nossas idéias, não houve nenhuma que correspondesse a uma impressão individual”, o narrador conclui.

“Pois, quando estamos na espera de preciosa descoberta e desejamos receber certas impressões da natureza, sentimos algum escrúpulo em deixar nossa alma acolher, em vez de impressões menores, que poderiam nos enganar quanto ao exato valor de Berma em Andrômaca, nos Caprichos de Marianne, em Fedra, era uma das coisas famosas que minha imaginação tanto desejara. Teria o mesmo divertimento que no dia em que uma gôndola me conduzisse para junto do Ti Frari ou dos Carpaccio de San Giorgio del Schiavoni, se alguma vez ouvidos pela Berma os versos: “Diz-se que uma súbita partida vos afasta de nós, Senhor, etc.”” 
 
Mas, a melhor parte ainda está por vir... em Balbec, o narrador conhece o pintor Elstir. No ateliê do pintor, ele descobre o quadro imaginário do porto de Carquethuit. O poder da obra em revelar “a natureza como ela é, poeticamente”, chama sua atenção.

Em Balbec, já bem instalado em seu quarto de hotel, o narrador observa – do “quadro” formado por sua janela – a extensão do mar e do céu. Este espetáculo de proporções panorâmicas, contínuo e continuamente renovado se desdobra diante dos nossos olhos.

“Às vezes o oceano enchia quase toda a minha janela, aumentada como estava por uma faixa de céu bordada no alto apenas por uma linha que era do mesmo azul do mar, mas que, por isso mesmo, eu imaginava ser ainda o mar, atribuindo sua tonalidade diferente a um efeito de luz. Em outra ocasião, o mar só se pintava na parte inferior da janela, estando todo o espaço restante coberto de tantas nuvens amontoadas umas contra as outras, em bandas horizontais, que as janelas pareciam, por premeditação ou especialidade do artista, apresentar um “estudo de nuvens”, ao passo que as diferentes vitrinas das estantes, mostrando nuvens semelhantes, mas em outra parte do horizonte e diversamente coloridas pela luz, pareciam oferecer como que a repetição, cara a certos mestres contemporâneos, de um só e mesmo efeito, apanhado sempre em horas diferentes, mas que agora, com a imobilidade da arte, podiam ser todos vistos em conjunto em uma mesma habitação, executados a pastel e cada qual sob seu vidro. E às vezes, no céu e no mar uniformemente cinzentos, um leve tom rosado se ajuntava com delicado requinte, enquanto uma borboleta adormecida na parte inferior da janela parecia apor com suas asas junto daquela “harmonia em cinza e rosa” ao gosto das de Whistler, a assinatura predileta do mestre de Chelsea.”

Por meio da “metáfora”, ao comparar a terra e o mar, o artista suprime as separações entre ambos, “só utilizando para o lugarejo termos marinhos, e vocábulos urbanos para o mar”.Esta revelação do poder da metáfora, chave para a vocação do herói-narrador que quer se tornar escritor, também é constitutiva do estilo de Proust. Como evidenciam as últimas palavras, iluminadas, do romance: “E, enquanto Françoise desprendia os alfinetes dos cortinados, despregava os tecidos e corria as cortinas, o dia de verão que ela aos poucos desvelava parecia tão morto, tão imemorial, como uma suntuosa e milenária múmia que nossa velha empregada não fizesse mais que ir desenrolando cuidadosamente de suas bandagens, antes de fazê-la aparecer embalsamada em seu vestido de ouro.”
Desta frase, surge uma alegria que já anuncia a “Adoração perpétua” e a poética do Tempo redescoberto.

 Jediel Gonçalves


Ilustração 1: Veronese (1528-1588), O Calvário (1580-1588).
Ilustração 2: Claude Monet, Passeio por Argenteuil (1875).
Ilustração 3: Joaquim Sorolla y Bastida (1863-1923), Passeio à beira-mar (1909)
Ilustração 4: Sandro Botticelli (1444/45-1510), Retrato de Simonetta Vespucci(1480-1485)
Ilustração 5: Leonardo da Vinci (1452-1519), A Estrela de Belém(1505)
Ilustração 6: Titien (1488-1576), A Ascensão da Virgem (1516-1518)
Ilustração 7: James Whistler (1834-1903), Crepúsculo de opala(1865).




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