Ilustração: Don Paulson
estranho a mim mesmo
quero reflexos
janelas
para olhar
- furtivo –
intimidades alheias
para olhar pedaços de mim
a esmo
sem ligação de retorno
luzes, cerveja, forró, samba e música dos anos oitenta
saliva, corpos, sexos duros
- é muito tarde -
bebemos muito e a roupa fede a cigarro
e nós moramos sozinhos e temos cachorros
e amanhã é domingo e começa o horário de verão
e o dia depois de amanhã é segunda e voltaremos a nossa rotina
talvez seja possível ficar em vertigem de trapezista
e cair como Altazor
à procura de estrelas fugazes nas gretas dos precipícios
- obrigado, Huidobro -
quiçá você possa cair fatalmente
mas eu conheço minhas quedas
e não as tuas
espera
como sustidas do céu por deuses
as nuvens pendem sobre a cidade
nuas
as árvores enfrentam o inverno
silente
aguardo que a noite invada
escondo o relógio na gaveta
espero o tempo passar
restos
acordo
ainda sem saber quem sou
o sol se derrama no quarto
minha cachorra me olha com ternura e abana o rabo
a manhã se tinge de suave bruma
meu companheiro finge continuar a dormir
restos da nossa pele ficam nos lençóis
e pelos da cachorra restam no chão
nos desmanchamos aos poucos
até o fim do dia
e da noite
e do dia
e da noite
a modernidade
é bem na hora em que as primeiras nuvens da tarde ficam refletidas nas janelas do prédio em frente e o vai-e-vem das portas de vidro mostram quem está saindo um pouco mais cedo do expediente
é bem nessa hora que a modernidade cospe no meio do rosto
quando as palavras dos outros se liquefazem e correm bueiro abaixo em direção a rios poluídos
e na solidão do transporte público volto à minha pequena residência para ver se consigo desfrutar o fingimento de um pouco de liberdade
e me encara uma futilidade de tempo desperdiçado em horas que não desejo e das quais não tenho como escapar
e então meu coração se une à revolta de pichadores e manifestantes
e minha desesperança a moradores de rua
Enrique Carretero nasceu em Santiago do Chile em 1971. Formou-se em administração de empresas em 1995, mas desde 1998 trabalha na área de ensino de idiomas. Em 16 de junho de 2001 chega a São Paulo, onde mora desde então. Em 2008 inicia o curso de Letras na Universidade de São Paulo, concluindo o bacharelado em Português/Grego em 2012. Escreve desde a adolescência. Travessias, editora Patuá, é o seu livro de estreia.