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ROBERTO DUTRA JR. RESENHA "DA ARTE DAS ARMADILHAS", DE ANA MARTINS MARQUES

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Da arte das armadilhasde Ana Martins Marques inicialmente me deu uma voracidade de Edgar Alan Poe sobre o texto. Explico: Poe dizia que um bom conto devia ser capaz de cativar o leitor para que o lesse de uma vez só. A armadilha principal da obra de Ana Martins Marques é prender o leitor irreparavelmente até o fim. Não larguei o livro até que o terminasse. Sei que o mesmo há de acontecer com qualquer leitor que tenha coragem de ser esta presa.
Ana M. Marques abre seu livro com um poema epígrafe que funciona como a ponte do seu lirismo: “entre a casa / e o acaso //... a morada / e o mar//... entre a ilha / e o ir-se”. Instala-se assim seu universo particular. O leitor mergulha em uma lírica do mínimo e do simples, que encerra em si a delicadeza do olhar poético. Só não se iluda pela leveza dos poemas e nem pela simplicidade vocabular dos versos de Ana M. Marques. Esta habilidade de transformar palavras cotidianas em trama lírica, dialoga diretamente com poetas icônicos da Literatura Brasileira, como Drummond e Gullar, e para não iniciar uma lista, aqui me detenho.
Ana M. insinua “entre”, e vamos adiante pela primeira seção do livro, “Interiores”, passeando, como que numa vitrine kitsch, por poemas com títulos de objetos. O atento olhar da poeta, ao mesmo tempo que não descuida da parcela de sombra necessária a qualquer poema, revela “um pequeno lago / de luz” embaciado no poema “Colher”. Da mesma forma, no poema “Garfo”, “floresce / o metal” e no poema “Cortina”, esta lê o vento como uma dançarina em braile.
Ainda nesta seção, o poema “Relógio” surge como um contraponto aos demais poemas simplesmente por ser um poema longo. Seu fôlego sustenta-se pelas páginas vindouras em que a autora alterna o dia e a noite em recortes da rotina vertidos no lirismo cotidiano que prima desde o início do livro. Sobre o casal sugerido em cada verso do poema, o inútil relógio não conta o tempo, presos, tanto eles como nós, os leitores, na armadilha do verso.
Ana M. mostra suas influências e surgem nomes como o de Bishop, Cummings, Akmátova e um claro diálogo com Hélio Oiticica, no poema “Parangolé”, que capta as voltas da vestimenta sem adjetivos, porém claro “corredor / para o corpo”. Procure bem, e encontrará outras, silenciosas, algumas despertas como um galo anunciando a manhã.
“Da arte das armadilhas” a seção final do livro, não traz na aparente multiplicidade de temas um fio condutor como na primeira parte. Apenas não caia nessa armadilha da sutileza. “A linguagem / sem cessar / arma / armadilhas” e na linguagem tudo se justifica, poema após poema. Neste segundo momento a autora nos traz uma seleta de textos que passam do mitológico ao teórico, das estrelas ao naufrágio. Temas que convergem, quase ao final da obra, no “Poema de amor”. Distópico, maiakovskiano em essência, esse poema pode ser um veneno para os apaixonados, mas quando tudo mais parece perdido, eis que numa pausa entre parênteses Ana M. novamente nos eleva ao lírico e mostra que mesmo sem ser, este precisa ser um poema de amor.

 Da arte das armadilhas de Ana Martins Marques é a arte de prender o leitor para fazê-lo cumprir um périplo de simplicidade e sensibilidade. Usando mais um verso de Ana M.: “o caçador está preso / à presa”, e se inflamam na clareza do verso.






                     SELEÇÃO DE POEMAS DO LIVRO




entre a casa
e o acaso
entre a jura
e os jogos
entre a volta
e as voltas
a morada
e o mar
penélopes 
e circes
entre a ilha
e o ir-se



“Talheres”


Colher


Se o sol nela
batesse
em cheio
por exemplo
numa mesa posta
no jardim
imediatamente se formaria
um pequeno lago
de luz



Garfo


Em três ramos
floresce
o metal



Faca


Sua fria elegância
não escamoteia
o fato:
é ela que melhor se presta
ao assassinato



*



Fruteira


Quem se lembrou de pôr sobre a mesa
essas doces evidências
da morte?



Cristaleira


Guarda
e revela
a nudez
branca
da louça
o incêndio
despareado
dos cristais



Cortina


entre o fora e o dentro
lês
o vento



Da arte das armadilhas


O seu corpo para o meu:
seta,
precisamente

Inaudível
o mundo mudo
aciona o fecho
da flor

Há desilusão
mas não há
fuga

O caçador está preso
à presa




imagem: ready-made "50 cc de ar de Paris", de Marcel Duchamp



*    *    *





Ana Martins Marques nasceu em 1977, em Belo Horizonte, onde mora. Graduada em Letras, tem mestrado em literatura brasileira pela UFMG. Trabalha como redatora e revisora na Assembleia Legislativa de Minas Gerais. É autora também de A vida submarina (2009), publicado pela editora Scriptum. Ganhou também o Prêmio Alphonsus de Guimaraens (FBN), pelo seu segundo livro, Da arte das armadilhas (2011), também finalista do Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2012).












Roberto Dutra Jr. é um neurótico social como todo brasileiro de cidade grande. Adora literatura, mas as palavras não fazem mais sentido. Mestre em Letras, tem um livro publicado e diversos artigos de caráter acadêmico e crítico publicados. Foi editor de revista acadêmica, contribuiu para jornais e revistas literárias no Rio de Janeiro  e tem um seríssimo flerte com a música. Adora gatos e poemas, que movem-se na penumbra e nunca revelam-se inteiramente. Leia mais textos do autor aqui.








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